TRÉGUA SILENCIOSA

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Porão iluminado por velas, tubulações nas paredes, preso num cano d’água por algemas metálicas e a menina sentada em uma cadeira diante de mim, devagar fui me mexendo e abrindo os olhos.
Havia em sua mao uma garrafa de vidro, dentro dela uma miniatura minha crucificada num fundo de areia.
— Parece que alguma divindade te protege, alguém poderoso o suficiente para ir contra a magia do destino.
— Do que está falando?
— Essa garrafa — ela balançava a garrafa em uma das mãos — possui seu corpo humano. Me ajude no que eu precisar e no final darei sua vida de volta.
— Não! Você não merece a vida.
— Já se perguntou o porquê de eu não merecer a vida? Já passou pela sua cabeça que eu posso ser a vítima da história? — seus olhos se enchiam de lágrimas enquanto despejava aquelas palavras — Já se perguntou porque eu matei?
— Não, e não me importa.
— Parecia importar. Você me estendeu a mão quando todos riam do meu sofrimento, você enfrentou o dobro do seu poder só para tirar o meu sofrimento. Você usa a lei moral, mas sua lei moral é falha,você diz que eu não posso agir feito Deus, mas você age! Punindo quem não merece a vida, também não é direto seu! Eu não sou a vilã, só estou desesperada. —desabafou, entre soluços e choro, abraçada aos seus joelhos.
— Qual é seu nome?
—Meiber...
—Meiber, o que está acontecendo?
— Eu sou uma Bruxa da Seda, me alimento de cadáveres humanos. Matei algumas pessoas para me defender.Durante boa parte de minha vida, profanei túmulos para me alimentar, mas o simples ato me transforma em uma pecadora. Comecei a atrair seres humanos e matá-los para deixar seus corpos apodrecerem para eu me alimentar, mas um guardião de Deus, chamado Demonty, um caçador de demônios, está me perseguindo, pois eu fui riscada de morte pelos meus ato e pecados.... Eu não quero morrer.
— Você me transformou para te proteger? — perguntei, respirando fundo.
— Me escoltar em segurança até a floresta sombria, no final do continente europeu, um lugar longe da luz, onde eu posso viver em paz na escuridão. Sou uma Bruxa da Seda, eu fio o destino, tudo que você viver comigo, não existirá no futuro,terá sua vida e seu corpo de volta depois que tudo acabar.
— Certo, mas que fique bem claro, depois de tudo reze para nunca mais cruzar o meu caminho, ou te levarei para o inferno!
— Está bem. Prometo que terá sua vida de volta.
Meiber certamente era culpada,mas eu deveria cumprir com minha parte no acordo, ela merecia a morte mais que qualquer pessoa e sei que,mesmo merecendo, ainda restava, no fundo de seu coração, uma menina assustada,que cometera atrocidades, por medo do mundo. Meiber me soltou das algemas e me guiou até uma escada, ao subir ela me levou pelo corredor mofado cheio de velas até um quarto caindo aos pedaços, com uma cama de madeira quebrada no meio, paredes com umidade e tinta descascando, um pequeno banheiro apenas de cimento e um chuveiro branco com a resistência queimada. No teto havia uma luz incandescente amarelada que piscava por conta da infiltração nos tubos. Meiber apontou para a cama onde tinha roupas para o meu tamanho avantajado.
— Ali tem um chuveiro, tome um banho e depois siga o corredor até o final, encontrará uma saída, mas dessa vez sem teias. — disse ela, me deixando sozinho no quarto.
Rapidamente, tirei meu short, que estava repleto de sangue e restos do casulo e entrei debaixo do chuveiro. Passei a mão sobre o pescoço e senti um ardor, olhei para o espelho e vi a marca dos dentes de Meiber, fiquei assustado com minha nova aparência, que lembrava muito a Fera do conto "A Bela e a Fera",porém, sem pelos no rosto, com uma expressão mais humana. Pude ver os outros ferimentos que se encontravam a cada milímetro do meu corpo.Saí do banho.
Me vesti e deixei o quarto, comecei a caminhar até o final do corredor onde se encontrava a saída, a luz do dia penetrava pelas frestas e rachaduras da portinha de madeira. A abri lentamente e acima de uma escadaria pude ver o trânsito caótico de minha cidade novamente.
— Todo esse tempo tão longe, e ao mesmo tempo tão perto...
Subi as escadarias e vi um ônibus pequeno me esperando na calçada, Meiber estava dentro dele fazendo sinal para  andar logo. Rapidamente, corri na direção do ônibus e subi as pequenas escadas do veículo. O motorista me encarou, assustado com minha aparência ameaçadora, e logo olha para Meiber dizendo:
— Seu gatinho de chifre chegou! — tentei levantar a voz contra ele, mas Meiber me puxou pela catraca.
— Não diga isso, ele se ofende fácil, não é, queridinho?
— Me chame de queridinho de novo e eu arranco sua língua. — retruquei em um tom baixo e ameaçador, ela então me empurrou para me sentar no banco, dizendo:
— Eu criei você, eu posso te chamar do jeito que eu quiser.
  Fiquei em silêncio para evitar mais discussões. Não demorei muito para notar que o ônibus ia em direção à saída da cidade, perguntei a Meiber para a onde estávamos indo:
— TrevesStation.Iremos pegar o trem para o norte até as montanhas e direto para a floresta sombria.
— Como você fez para esse ônibus chegar até TrevesStation?
— Com isso — disse, me mostrando uma pequena bolsinha cheia de moedas de ouro, com diamantes incrustados em seus centros.
— Você tem uma fortuna aí!
— Fala baixo, imbecil, não vê que o ônibus está cheio?
— Desculpa, mas como você conseguiu?
— Apesar da minha aparência, tenho muitos anos de vida, vivi na época das navegações e roubei o tesouro de uma escuna espanhola que se perdeu no mar.
— Quê? Você então tem...?
— Muitos anos, é feio ficar falando a idade das pessoas.
— Mas você tem a aparência de uma garota de dezoito... — não conseguia acreditar no que Meiber me contara, mesmo que ela tivesse tantos anos assim, sua mente estaria sobrecarregada de tantas ligações neurológicas, que ela teria problemas para pensar racionalmente e, mesmo que a cabeça dela tivesse essa capacidade, seria quase impossível ela estar viva todo aquele tempo.
— Que foi? — perguntou ela ao ver minha careta de intrigado. — Não acreditou?
— Nem um pouco, a ciência diz que uma pessoa com um grande número de anos, acaba não suportando o fardo de uma vida longa, tenho dados que mostram que você está mentindo.
— Não estou, e esses "dados" se aderem aos vivos.
— O quê?
Meiber revirou os olhos, pegou em minha mão ele vou até seu peito.
— Eu estou morta, nasci sem vida. Sou uma Bruxa da Seda, não preciso de sangue e calor pulsando em meu corpo — e embora a sensação de vergonha por estar pegando no seio de uma garota, Meiber falava a verdade o coração dela não batia, rapidamente coloquei a mão em sua testa e senti sua temperatura, Meiber era extremamente gelada.
— Mas como você pensa e fala? É preciso de oxigênio.
— Sim, é. Mas eu respiro, só que meu coração não bate... Rony, eu não sei muito sobre minha anatomia, agora para de me encher de perguntas!
— Ok, não precisa ficar nervosa, já parei.
— Que bom.
— Só me fala, quantos anos você tem?
— QUE PERGUNTA CHATA! EU TENHO 17.016! Está felizagora? Me deixa em paz, droga!
— Você é tão velha que já deveria ter virado pó hámais de 10 mil anos!
—CALA A BOCA! Eu não sou velha! Vocês é que vivem pouco! Se você ousar falar da minha idade denovo, vou costurar sua boca.
. . .
A viagem prosseguiu sem mais diálogos, logo a paisagem passa a mudar para um cenário mais rural, com longos e verdejantes pastos, costurados por cercas de arames farpados e pequenos núcleos de matas ciliares próximos aos rios e regatos. Mais à frente vi uma nuvem cinza de tempestade se formando no horizonte.
— Parece que vai chover... — falei, comentando o tempo.
Meiber estava deitada no banco com a cabeça sobre a mochila e murmurou baixinho:
— A chuva é boa para dormir de conchinha.
— Oi? Como é?
— Chuva! — gritou Meiber, com um olhar de pânico ao ver a nuvem de tempestade relampeando— PARA O ÔNIBUS! PARA!
— O que foi menina? Pra que esse desespero? — o motorista grita em resposta aos berros de Meiber, que o assustara.
— Você temque contornar a tempestade! Olha, eu te dou até duas moedas para dar meia volta.
— Que é isso,Meiber? É só um mal tempo.
— NÃO! Não é um mal tempo, é o DEMONTY! Ele veio atrás de mim, a tempestade é seu cartão de visita. Eu não tenho tempo para explicar tudo. Dê meia volta nessa banheira de metal!
— Não há outra estrada para o norte, moça — insistiu o motorista.
— Eu não vou morrer hoje, vamos Rony!— dizia Meiber zangada, descendo do ônibus.
— Meiber, aonde você vai? — perguntei, ficando em pé na porta do ônibus, vendo Meiber correr em direção oposta à tempestade.
Olhei para o céu e vi as nuvens escuras cercarem o ônibus e, de repente, um raio atinge a estrada, alguns metros à frente de Meiber, fazendo-a cair sentada no chão.
O impacto do raio havia sido tão grande, que levantou uma fumaça preta do asfalto queimado. Assim que a fumaça se dissipou, revelou o ser que o raio havia trazido, um enorme pitbull monstruoso, possuía grandes e pontudos dentes, espinhos nas costas e um corpo musculoso e forte, com várias marcas de combate na região do peito e dos ombros, seu tamanho era maior que o ônibus e deveria pesar mais que 15 toneladas. Assustada, Meiber lança um feitiço de bola de fogo contra a cara do cachorro, mas as chamas e a explosão não arranharam nem a pele do cão, que abriu a boca na intenção de engolir Meiber, ele lançou um enorme rugido, fazendo o chão estremecer.
Vendo que o cachorro estava prestes a engoli-la, minha única chance de voltar a ser humano, entrei em desespero e rapidamente fui tomado pela raiva e valentia.
Atravessei a janela do fundo do ônibus, fazendo-a explodir em milhares de pedacinhos de vidro e, ao tocar com os pés no chão, dei um salto de hipervelocidade na direção do cão e, ao chegar próximo a ele, acertei-lhe um gancho de direita fazendo-o andar alguns passos para trás.
Assim que meus pés tocaram novamente o chão, saltei contra seu pescoço,fazendo-o tombar para o lado. O cachorro abocanhou meu braço e passou a me chacoalhar de um lado para o outro, usei as chacoalhadas para acertar meu pé contrao olho do cachorro, fazendo-o abrir a boca.
Ele me jogou para cima e,ao fazer isso, caí com os dois punhos dentro de um dos seus olhos, fincando meus pés em seu focinho curto.Puxei meus punhos com força,na intenção de arrancar seu olho e,ao conseguir puxar seu globo ocular para fora, cortei suas ligações com minhas garrase saltei de seu focinho com um mortal para trás, caindo de pé perante meu oponente caolho. O cão remoía em grunhidos de dor e sofrimento, por ter um olho arrancado.
Vendo em minha mão seu olho esquerdo, um brilho de ódio se acendeu em seu olho direito, vários tremores passaram a circundar o cão que fizera o chão rachar ao seu redor. Lentamente, ele levantou sua cabeça ao céu e vários raios passaram a adentrar sua mandíbula, criando uma esfera de energia, ele abaixou a cabeça e cuspiu em nossa direção aquele projétil destrutivo.
Rapidamente,corri na direção de Meiber e abracei-a, protegendo da esfera que acabara por engolir nós dois.O asfalto derreteu com a alta temperatura, Meiber olhava por cima de meus braços todo aquele inferno destrutivo, a energia se aquecer até se expandir, criando uma explosão que fezo ônibus se afastar ainda mais. Ao ver que o pior passara,Meiber levantou seu olhar para mim, surpresa.
— Como você fez isso? Como me fez sobreviver a uma cólera dos céus?
— Eu não sei, só...aaaah! — sem perceber, o cão agarrou minhas pernas com sua boca e me jogou para longe de Meiber, vendo o  se aproximar dela, rapidamente agarrei uma de suas patas traseiras e passei a arrastá-lo para trás.
— Fique longe da garota, besta!
O cão se virou para mim e me acertou com um coice, me fazendo rolar pela pista. Com o impacto voei para o acostamento e bati com as costas sobre a cerca de arame farpado. Olhei na direção do cão que avançava em minha direção, raspando suas presas contra o chão, fazendo levantar fagulhas de fogo. Lentamente,me levantei, soltando as costas do arame e ficando em pé, erguendo o dedo na direção do cachorro gigante.
— Sua conversa é comigo! — melancei em sua direção, rapidamente saltei contra seu rosto, acertando-lhe um chute.Logo ele se recuperou e me atacou com uma mordida, deixando apenas a parte superior de meu corpo para fora de sua boca.
Novamente,lançou-me ao ar e abriu sua enorme boca para cima, na intenção de me engolir de uma vez. Meiber, ao ver aquela situação de perigo, me lançou um feitiço e, em minhas mãos, materializaram-se correntes prateadas com lâminas nas pontas, não ousei perder tempo, girei o corpo fazendo a ponta da corrente cortar uma das orelhas do cão, fazendo o cachorro abaixar a cabeça e grunhir de dor.Atingi o asfalto, conseguindo me manter em pé.
— Agora vamos empatar o jogo —avancei contra o cachorro com velocidade, cravando uma das lâminas sobre sua testa, pulei seu pescoço, enrolando a corrente sobre o mesmo e, assim que toquei o chão, rapidamente passei a puxar a corrente, fazendo o cachorro perder o ar.
Girei a outra lâmina com força e a joguei contra o cão, fazendo-a passar em diagonal,decepandosua enorme cabeça canina.
Meiber quase não acreditava, um guardião de Demonty sendo decapitado por mim. Com o animal morto, me virei para a bruxa que estava ainda jogada no chão.
Ela se levantou, pegou sua bolsa e caminhou em minha direção.
— Vamos embora... -falou a passando por mim.
— Quê? Mas, e o ônibus?- falei me virando para o veicolo repleto de curiosos.
— Não vou voltar lá, eles viram tudo! Seria arriscado demais, vamos a pé... — disse ela, indo na direção da cerca e passando por debaixo do arame farpado, caminhando até o pasto.

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