O Prelúdio do Fim

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Por uma fração de segundo, Cris não ouviu som algum. Porém ela não se perguntava o porquê. Também parecia não estar preocupada em se levantar antes que a água gélida invadisse os seus pulmões. Ela só estava ali, jogada no chão do Setor 6 com um fio de sangue descendo pela sua testa. O sangue perdia o seu rubor ao se misturar com a água que ela também não sabia de onde vinha. Não que se importasse com isso. Ou com qualquer outra coisa.

Naquele exato instante congelado no tempo, a mente de Cris estava tão oca como uma árvore morta em um inverno rigoroso. Seus olhos continuavam abertos mostrando suas pupilas atingindo o mínimo nível de dilatação. Seus pulmões não se enchiam de ar para oxigená-la.

Estaria mesmo morta?

Essa era uma pergunta que, sem dúvida, ela não tinha condições de responder. Leafarneo, infelizmente, também não. Ele não estava no Setor 6 olhando para o corpo de Cris desovado de forma tão cruel.

Charles também não estava por ali. Entretanto, Cris não estava sozinha no Setor 6. Ela divida o chão com corpos de pessoas que jamais viu. Nem todos ainda permaneciam inteiros. Um rosto com a parte do maxilar inferior ausente olhava fixamente para seus olhos a alguns centímetros dela. O rosto do homem sem maxilar trazia vários pontos de roxidão nas proximidades do nariz, quando violentamente encontrava seu fim em uma mandíbula exposta e incompleta.

O curto espaço entre o rosto sem maxilar e a face pálida e sem vida de Cris era trilhado por alguns dentes já submersos pelo volume da água. Por sorte, o dono do maxilar arrancado ainda contava com seus braços e pernas. Não a mesma sorte de outros corpos que ali seriam afogados pela água que parecia tomar a Unidade C com mais força a cada segundo.

O homem sem maxilar não era o único a fitar Cris com seus olhos de morte. Ela também servia como principal atração para um trio de pessoas que a assistia através do vidro transparente do LAB 01 - local em que ela e Leafarneo tiveram seu primeiro encontro com Charles. O trio, entretanto, não parecia estar disposto a ajudá-la. Pelo contrário.

Se aquelas pessoas descobrissem como atravessar a parede do LAB 01, iriam até Cris e terminariam de despi-la de seu vestido preto, cujo zíper da parte posterior estava cravado em sua carne na altura das costelas. Ela não sentia a dor pungente do ferimento aliada à dor de sua costela fraturada há dois meses na proximidade de Brasília. Não mais.

Estaria mesmo morta?

Ela ainda não podia dizer por si só.

Joana era também incapaz de responder a esse questionamento. Não por estar nas mesmas condições de Cris. Ela não estava jogada no chão de um setor qualquer quase sendo devorada por mortos-vivos. No exato instante em que Cris sentiu as forças se esvaírem de seu corpo, os cabelos de Joana banhados em sangue pendiam ao vento do ar-condicionado e quase tocavam a água que cobria a superfície.

Camargo podia segurá-la nos braços, mas preferiu jogá-la por cima de seu ombro direito enquanto corria para o encontro de Délia. Ela era a única capaz de salvá-la. E ele, mais do que nunca, precisava olhar nos olhos de sua irmã.

As escoriações múltiplas no rosto de Camargo o deixavam quase irreconhecível. Uma dor lancinante irradiava de sua face e o consumia por completo. Ele não sabia identificar qual das pancadas que sofrera doía mais. Entretanto, aquele aprofundamento abaixo do olho direito só podia ser sinal de algo muito ruim. Talvez o epicentro de uma das piores dores que já sentiu em sua vida.

— Não morra agora, sua infeliz. Só eu tenho o direito de tirar a sua vida. Trate de se manter firme mais um pouco — disse Camargo para Joana, que não estava em condições de escutar e entender palavra alguma.

LIVRO III - A Ordem do CaosOnde histórias criam vida. Descubra agora