No mar

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Hoje estou escrevendo esta carta para colocar em uma garrafa e jogar no mar. Quem sabe alguém possa encontrá-la durante alguma tempestade por aí.

Quando eu era pequena corria de um lado para o outro, comia pão com doce de goiaba, andava de bicicleta, caia e ralava os joelhos. Quando eu era pequena a esse horário, em um domingo de tarde, eu já estava voltando para casa, depois de mais um dos muitos finais de semana que achei que ainda teria. Quando eu era pequena assistia ao programa da Eliana e depois ao Silvio Santos, depois também as Vídeo Cassetadas, mas nem sempre ao Fantástico. Nunca gostei daquelas notícias. Coisa de gente grande, sempre pensei.

Quando eu fui crescendo, comecei a ter medo de não ter mais os finais de semana. Passei a não acreditar que tudo aquilo estava acabando. Então acabou. Teve seu fim. Assim como tudo na vida tem. A minha segunda casa deixou de ser o lugar para onde sempre ia. Quando eu fui crescendo, passei a ter mais receio de assistir ao Fantástico. Acho que a gente vai percebendo e entendendo como o mundo funciona. Então eu já não andava mais de bicicleta, já não corria e nem comia o pão com doce de goiaba. Mas meus joelhos continuavam com as cicatrizes.

Quando eu cheguei aonde estou hoje, percebi que muita coisa mudou desde o início. Os medos mudaram, os sonhos, as expectativas e as opiniões. Também as pessoas. Algumas foram embora, outras ficaram, e assim a vida vai seguindo. Quando cheguei aonde estou hoje, tive a certeza que ainda não estou preparada para ver o Fantástico, mas talvez não seja pelo programa, mas pelas ações das pessoas, pelo medo do que pode vir a acontecer. Quando cheguei aonde estou hoje, percebi que meus joelhos ainda estão com as cicatrizes. Entendi que a gente pode mudar de casa, opinião, corte de cabelo, qualquer coisa, mas a cicatriz, a sua raiz, o seu início vai ser sempre o mesmo. E você pode sempre se reencontrar criança. Sempre voltar àquelas memórias boas que você quer recordar.

Feche os olhos e imagine. E quando tiver medo de seguir em frente, lembre-se que você sempre vai ter com quem contar. Procure essas pessoas e conte do seu início, das suas memórias, da sua vida. Você vai perceber que já passou por muitos problemas, esse é só mais um.

Hoje estou escrevendo esta carta para colocar em uma garrafa e jogar no mar. Quem sabe alguém possa encontrá-la durante alguma tempestade por aí. Se a tempestade te jogar para fora do barco, não desista, não pare de nadar. Você sabe do seu início, sabe que o seu barco ainda está ali em algum lugar e conhecer o seu princípio é o colete que vai te salvar. O dia vai amanhecer e o mar vai se acalmar. Acredite. A gente pode sempre se salvar.

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