Antigas regras novas

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O Diretor Bourke é um imortal sombrio mais antigo do que qualquer um de nós. E como tal, esconde "suas cartas" muito bem... (Leia-se: seus poderes). Ele dá um sorriso sem humor, que não alcança os olhos – agora amarelos. Há um quê de advertência pairando no ar. Naturalmente, nós três estamos cônscios de sua superioridade física.

-Podem ir... - ele gesticula, com voz suave. - Estão quase atrasados para a primeira aula da madrugada.

-Sim, senhor - eu vou empurrando Sean apressadamente, antes que meu irmão fale ou faça algo que ambos nos arrependeremos mais tarde.

-Ah, Sr. Hume... mais uma coisinha – diz o diretor.

Eu me viro, agoniado. Sean permanece de costas para as escadas e, consequentemente, para o diretor, encarando a parede com uma carranca homicida.

-Não poderá proteger o seu irmão para sempre – Bourke comenta, de forma inesperada.

O corpo de Sean se retesa inteiro, como acontece com nossa espécie quando nos preparamos para lutar, caçar... e matar.

-Curioso o senhor me dizer isso, Sr. Bourke... - eu revido, com toda a calma e leveza de que me sinto capaz - ...porque foi ele quem me socorreu.

Sean me olha de soslaio. Ele continua de costas para o diretor - mas, agora, seu olhar exprime preocupação e desconfiança. Ele não quer que eu leve ferro por causa dos seus maus modos. Então, mais controlado, gira nos calcanhares e encara o diretor com expressão neutra.

-Eu sei disso... - o diretor sorri, observando meu irmão com complacência.

Ele parece "ler" tudo o que se passa em nossas mentes, embora eu saiba que este não é um dos talentos da nossa espécie.

-Mas, diga-me, quem vai socorrê-los da língua ferina do seu irmão? – O diretor insiste.

Ouço quando Sean respira fundo e dá um passo à frente. Eu o agarro pelo colarinho. Sean pode ser o mais veloz; mas, de nós dois, eu sou o mais forte. Com a outra mão, puxo-o pelo ombro em direção ao nosso dormitório.

Quando já estou abrindo a porta, ouvimos a risada suave do diretor.

-Aprendizado número dois para a planilha de SMH: controlar temperamento, desenvolver postura mais pacífica – escutamos o comentário do Sr. Bourke, como que para si mesmo. No entanto, sabemos que ele sabe que estamos ouvindo.

Solto um gemido involuntário. Sean acaba de ganhar mais uma meta a ser cumprida, em sua planilha pessoal de aprendizagem.

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Faço uma careta quando ouço Sean bater a porta com um estrondo tão alto que deve ter acordado os mortos. Penso em dizer a ele para moderar a força, senão acabará arrancando as dobradiças... No final das contas, nós é que teremos de recolocá-la no lugar. Essa é uma das regras do internato: o que a gente quebra, tem que consertar.

Se eu lembrá-lo disso agora, porém, Sean pode ficar mais zangado do que já está; e apesar de eu ser o mais forte dos dois, detesto violência! De acordo com nossos mentores, agressividade e beligerância não são o meu fraco – mas são o de Sean.

-Qualquer dia desses... - ele resmunga entre dentes.

Definitivamente, beligerante.

-Não vê que ele te provoca de propósito? –Argumento, num tom cansado. - E você sempre cai.

Sean me olha de esguelha, parecendo estar decidindo se dirige toda a sua raiva para mim, ou não.

-Caio nada! – Ele nega, carrancudo, dando um puxão brusco na camiseta, que sai pela cabeça de qualquer jeito. Ela rasga ao meio. Sean encara com desgosto os farrapos e atira-os dentro da lixeira. Num movimento rápido, fluído, coloca o uniforme azul marinho da escola.

Resolvo imitá-lo. Com mais delicadeza, naturalmente...

-O maldito não vai conseguir! - Sean volta a resmungar. -Eu não vou perder o controle.

-É assim que se fala, mano – trato de motivá-lo.

-Ele me pegou num dia péssimo. Foi só! - Sean continua resmungando e justificando para si mesmo.

Meu irmão é tão fechado que eu, normalmente, evito invadir o seu espaço. Nós não costumamos nos dar como aqueles gêmeos que aparecem nas propagandas de TV – usando roupas iguais e dividindo tudo, inclusive os sentimentos... Contudo, é óbvio que alguma coisa o está incomodando, além da habitual implicância do diretor.

-O que aconteceu? - ouso perguntar.

Longo silêncio... Mas eu já estou habituado a não receber respostas às minhas perguntas. Ele só responde quando tem vontade – nada mais, nada menos.

De repente...

-Ela aconteceu.

...Surpreendentemente...

-Eu a reencontrei hoje.

...Aí está a resposta! Sean se abre comigo pela primeira vez em décadas!

-Sério? – É tudo o que consigo dizer.

Eu soube por alto que o primeiro encontro deles foi por acidente, uma casualidade. A informação não chegou aos meus ouvidos pela boca de Sean, fique bem entendido! Mas, agora Sean vem me dizendo que aconteceu um segundo encontro... Teria havido um terceiro?

Até onde eles foram?

-Kátia chorou... Eu escutei. – Percebo a ferocidade em sua voz. Ferocidade de um imortal que já se considera dono da fêmea humana. Isso não é nada bom... – Achei que ela estava tendo um pesadelo, sei lá – prossegue ele, sem atinar patavina para os meus pensamentos caóticos.

Ele olha bem dentro dos meus olhos, e confessa: - Acabei mandando as regras da escola à merda...

Não!

-O que você fez, Sean? – Pergunto baixinho, com medo de ouvir a resposta.

Ele dá de ombros e ergue o queixo, num desafio mudo.

-Fui até lá para confortá-la – conta, com relutância. - Mas, quando cheguei, a colega de quarto dela já tinha se encarregado disso. - Ele faz uma cara confusa; de dor e espanto ao mesmo tempo. - Não entendo... Mesmo depois de acordada, ela continuou chorando nos braços da amiga. O que será que ela sonhou de tão macabro que a deixou assustada daquele jeito?

Isso é grave... Quero dizer, não pelos motivos que levaram ao sofrimento da garota humana, e sim, porque Sean tinha ultrapassado os limites do terraço norte, e visitado a ala dos humanos enquanto eles dormiam. Essa é uma transgressão grave.

A ironia da situação é que meu irmão, normalmente fechado, quando decide se abrir despeja uma bomba em cima de mim!

Ele não para por aí, e começa a me contar como foi que os dois se conheceram. Eu fico chocado. Primeiro, porque ele não costuma me contar nada. Segundo, porque eu sei de sua fobia por humanos... Sean detesta humanos!

O fato de me contar algo tão íntimo me faz concluir que ele deve estar precisando muito desabafar. Sou sua única família, portanto, é meu dever apoiá-lo. O mesmo ocorre da parte dele. Só que eu pelo menos não tento bancar o durão.

Enquanto ele fala, vou estabelecendo minhas próprias teorias sobre os acontecimentos. Para começo de conversa, a tal Kátia deve ser uma bisbilhoteira de marca maior. A típica encrenqueira. Mas como meu irmão está caidinho pela garota, acho mais prudente guardar minhas impressões.

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