Interesse

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Sean faz uma careta e gesticula, antes de jogar os cadernos dentro da mochila.

-Nem sei por que tenho que fazer anotações, quando podemos guardar tudo na memória.

Verdade... Assim como é verdade que, com a assombrosa velocidade sináptica de nossos neurônios, saltamos de um pensamento a outro quase o tempo todo. Por causa disso, nós nos distraímos com muita facilidade. São tantas as sensações (os humanos não têm capacidade de captar uma infinidade delas), que fica difícil para nós mantermos a atenção em um único objeto.

-Organização e paciência - respondo. - Temos que aprender a agir como os humanos, se quisermos viver entre eles.

Mediante minha resposta, Sean faz outra careta e volta a jogar as coisas dentro da mochila. Tudo acontece num piscar de olhos, porém, minha visão - a mais poderosa das câmeras de alta resolução - capta cada item que ele está guardando na mochila... Até que um dos itens me chama a atenção. Eu o capturo em pleno ar, antes que Sean possa "escondê-lo".

É uma lapiseira cor de rosa, com plumas multicoloridas na ponta. Para olhos humanos, apenas mais um objeto. Para os meus, trata-se de uma composição fascinante - os reflexos que a iluminação produz sobre as plumas, criam uma variedade de pontículos de luz sobre e entre as cerdas macias, que ondulam no ar...

Encaro meu irmão, que evita o meu por algum tempo... A tensão cresce, até que ele bufa. De súbito, vira-se para mim com as sobrancelhas erguidas, numa atitude de franco desafio. Eu até posso ouvi-lo pensando: "E daí"?

Acontece que eu não estou disposto a me deixar intimidar pela sua cara feia. Aquela história com a humana já foi longe demais. Giro a lapiseira bem diante do seu nariz e ele a agarra. Seus olhos amarelos brilham ameaçadores.

-Você se encontrou com a humana de novo. – Não foi uma pergunta.

-Não. – Ele responde, prontamente. - Ela deixou a lapiseira cair e eu...

-...pretendia devolver – concluo,  com sagacidade.

-Eventualmente... Um dia desses... Quem sabe...? - ele dá de ombros, com descaso.

Sean atira com raiva a lapiseira dentro da mochila, em seguida, volta a me encarar. Eu ergo as mãos como quem se rende.

-Eu só perguntei... Não sei se você se lembra, mas houve dias em que você odiava os humanos.

A cara dele desmontou um pouco.

-Ela é... diferente.

Eu não cometo a insensatez de dizer-lhe que poderia ter deixado a lapiseira no quarto dela, já que andou se esgueirando por lá como um gatuno... Também não cometo a descortesia de lembrá-lo de que a lapiseira é só uma desculpa furada para um novo encontro... Não, eu não posso ser assim, tão direto com Sean. Tento abordar a questão da maneira mais diplomática possível. Se ele não se importa consigo mesmo, certamente se importa com ela. Se eu apelar para a preocupação que Sean aparentemente sente pela humana, talvez ele dê ouvidos à razão...

-Vocês dois estão se arriscando. Sabe disso? Se descobrirem que Kátia teve contato com um imortal antes de concluir a parte essencial do treinamento, ela ficará em maus lençóis. Nem imagino qual vai ser a penalidade imposta pelos mantos... Eles são bem cruéis, de vez em quando... Mas acho que você não se interessa pelo que vai acontecer com a garota – digo num tom casual, dando de ombros. – Você nunca gostou de humanos, não é?

Sinto, mais do que vejo, quando o corpo dele se retesa, enviando-me vibrações repletas de raiva... Ótimo! Trato de continuar com minha linha de argumentação, antes que ele exploda e não escute mais nada.

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