O dia começou e terminou

915 137 79
                                    

Guardo as ferramentas na caixa, fecho o galpão e retorno pelo mesmo caminho que conecta o celeiro à sede. O sol está começando a se por no horizonte. E nós devemos nos apressar, se quisermos mostrar ao nosso pai o serviço feito, antes da janta. Chuto uma pedrinha, no caminho, e continuo andando. Eu me sinto a ponto de gritar de alegria... Se tudo der certo, ao raiar do dia, nós estaremos com o pé na estrada.

Ainda pensando nisso, volto ao celeiro para chamar o Sean. No entanto, sou surpreendido por uma cena pavorosa: dois dos nossos cavalos estão caídos nas baias – o pescoço e o abdome estraçalhados. Suas tripas expostas e misturadas ao feno... Tem sangue por toda a parte.

O meu sangue gela nas veias.

O meu coração começa a martelar como um tambor em meus ouvidos e o suor me inunda, enquanto olho desvairadamente ao redor. De repente, o mundo parece parar. Meus olhos se focam num braço pendendo por de trás do monte de feno. Eu me aproximo sem acreditar no que se revela por trás do feno: o corpo ensanguentado de Sean estendido ao lado do forcado.

Ele ainda respira... Para o meu horror e desespero, está engasgando com o próprio sangue que brota dos rasgos profundos em sua garganta. Eu ofego, tento apoiar sua cabeça, mesmo sabendo que aqueles cortes impiedosos não têm recuperação (dá até para ver os nervos, tendões e um pedaço da traqueia por entre as fendas).

Grito, enlouquecido, embalando meu irmão nos braços. Ele me lança um olhar esgazeado e levanta lentamente a mão. Levo alguns segundos para entender que ele está apontando para a janela. Olho através do vidro, sem entender bem, e vejo nossa casa. Tenho um pressentimento que não consigo traduzir em palavras. Só sinto um impulso de correr para a sede.

-Aguente firme - balbucio. - Vou pedir ajuda!

Deposito com cuidado o corpo maltratado de Sean, no chão, antes de sair gritando o nome de nosso pai. Se tivesse prestado atenção ao gesto de Sean, se não estivesse tão desesperado, teria entendido o que meu irmão tentara me prevenir... Ele estava lá, na casa, esperando por mim.

Irrompo cozinha adentro só para dar de cara com o corpo de minha mãe estendido no chão, perto da geladeira. Há alimentos caídos e esparramados por toda a parte. Uma garrafa de leite foi espatifada. A porta da geladeira está aberta, ocultando parte do corpo dela... Num instante, percebo que seu estado é pior do que o de Sean. Eu só consigo identificá-la por causa do vestido e do avental florido, pois está totalmente coberta de sangue... Além de faltar uma parte substancial para reconhecimento.

Pois é...

Minhas pernas bambeiam, enquanto me forço a dar os passos necessários para me aproximar dela e examinar o cenário. A cabeça foi completamente separada do corpo, e está... Olho ao redor, procurando... Meu Deus! A cabeça foi abandonada dentro da pia.

Agarro meus cabelos e os puxo com força. Talvez uma dose de dor me faça acordar daquele pesadelo. Vertigens ameaçam me derrubar, mas eu resisto. Dou meia-volta e começo a correr sem saber ao certo aonde ir, ou que atitude tomar.

Assim que alcanço a sala, deparo-me com o meu pai. Sua cabeça também foi arrancada, mas permanece pendurada pela pele. A risada sacode o meu peito, a princípio, baixinho... E vai aumentando de volume, sem que eu tenha qualquer controle. Então a gargalhada eclode histérica, e eu não consigo mais parar. Estou sonhando, é claro. Sei que eu vou acordar a qualquer momento e perceber que o dia nem tinha começado. Aquilo não pode estar acontecendo. Não pode! Eu estou tendo um pesadelo ridículo.

Eu dou alguns passos trôpegos, escorrego numa poça de sangue e caio sentado. Sinto o impacto da batida no quadril. A dor é de tirar o fôlego, mas também me faz perceber que eu não estou sonhando.

A Muralha 2 | AMAZON COMPLETOOnde histórias criam vida. Descubra agora