JOÃO WALTER HUME -Domesticando feras -

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De todas as estações, eu gosto mais do inverno. Talvez por ser tão curto. Tão raro. Em algumas ocasiões, temos sorte. A neve e o gelo se estendem como um tapete branco por entre os pinheiros... Correr sobre a neve é incrível! Mas, independentemente da estação, correr é sempre um prazer para mim.

Estações... O que significam para mim, além de um instante de liberdade? O que eu me lembro sobre elas? Não muita coisa... Exceto, talvez, por flashes de momentos em família; imagens que me escapam toda vez que tento retê-las na mente. Alguns estudiosos da mente imortal chamam de "lembranças fugidias"; percepções de sonhos ou memórias distorcidas, que nem chegam a alcançar a consciência.

Tenho tido muito dessas coisas, ultimamente... Momentos que aludem a dias quentes e alegres; a dias frios e introspectivos; a dias chuvosos e melancólicos. No vai e vêm de recordações, tenho uma vaga noção sobre o que as estações representaram em minha vida. Em minha muito longa vida. Não consigo, entretanto, identificar aquelas pessoas que se intrometem de vez em quando na minha cabeça? Elas me deixam aflito...

Bem, isso não importa mais.

Fato: desde há muito, meu corpo não assimila mudanças climáticas. Verão, outono, inverno, primavera e verão outra vez. É tudo a mesma coisa. Sempre igual e confortável... Monótono. O perfume das flores não me emociona, embora eu consiga sentir todas as suas nuances – mais que qualquer cão farejador da polícia poderia sentir. Eu não suo com o calor, nem tremo com o frio.

Uma vez Sean me disse que gostaria de correr pelado em meio às geleiras do polo norte, só para tentar sentir o clima rigoroso de lá.

Eu sorrio, desviando das árvores por milímetros antes que a colisão provoque um choque digno de nota no "Notícias da Muralha":

MAIS UM ACONTECIMENTO INEXPLICÁVEL NA FLORESTA TELA VERDE ASSUSTA MORADORES.

NÃO SE DESCARTA A POSSIBILIDADE DE TERREMOTO!

Fato: a maioria dos sons vindos da floresta deixam os humanos de cabelos em pé. E com razão... Um rugido aqui, um estrondo ali, uma aparição inexplicável acolá... De vez em quando escapa... O poder escapa. Nós, imortais, somos poderosos. Mas, somos terminantemente proibidos de assustar os humanos.

Fato: uma exibição de poderes só prejudica o nosso desempenho na escola. Discrição é a palavra de ordem, mas que nem todos respeitam. Quebrar as regras é passagem certa para o confinamento. E eu não pretendo voltar para lá.

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Contorno a última elevação que, por sinal, é a mais íngreme. Meu corpo se projeta instintivamente para o alto, como um míssil. Conhece o ditado? Tudo o que sobe tem que descer... Como se fosse uma coreografia ensaiada pela Gravidade, caio e rolo ribanceira abaixo, passando por entre as rochas - batendo em algumas, ricocheteando em outras.

O descampado se abre diante de mim. Meus reflexos rápidos não perdem o menor detalhe do cenário, enquanto avanço pelo declive como um cometa feliz.

Num rápido movimento, paro estático sobre os joelhos flexionados – usando apenas o polegar e o indicador da mão direita como freio e apoio – com eles fincados na terra, equilibro praticamente todo o peso do corpo.

Antes mesmo de concluir a ordem mental, meu corpo já está de pé.

Limpo uma mão na outra, distraidamente. Olho de relance para minhas roupas e levo um susto. Xingo baixinho, avaliando o grau de destruição. Bem, até que foi pequeno em vista dos costumeiros "acidentes de percurso". Eu tenho apenas alguns rasgos na camiseta e na calça jeans. É de se espantar que não tenha esfacelado toda a roupa.

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