Quadro a quadro

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Sean e Kátia se encontraram pela primeira vez por acaso, num dos chamados "corredores proibidos" – quer dizer, proibidos para os recém-iniciados, sejam eles humanos ou imortais. Na verdade, os corredores são galerias amplas, onde encontramos quinquilharias interessantes espalhadas pelos cantos... Entre elas, móveis antigos, troféus de campeonatos estudantis, quadros a óleo, além de fotos antigas de ex-professores e ex-alunos.

Tudo muito inocente e normal para olhos humanos... Mas para nós, os retratos e fotos são um show à parte. Eu até já tinha espiado, numa das minhas passagens por lá. As minhas preferidas são as fotos da "sósia" de nossa Professora Deveau: Charlotte Bailey (1830 a 1860). Depois a mesma fisionomia aparece com outro nome e indumentária: Rosemari Bailey-Deveau (1920 a 1950).

De 1970 a 2000, Carolina Deveau, detém a cadeira de Arqueologia dos Códigos Linguísticos – ACL. A partir de 2010, ostentando um visual moderno, reaparece como uma jovem idêntica de nome Ana-Maria Deveau.

Parentes? Claro que não! Trata-se da mesma mulher em cada uma daquelas imagens. Tão congelada no tempo quanto qualquer um de nós. A fisionomia dela desafia as leis da natureza humana, ao assumir a mesma disciplina por mais de dois séculos.

Comparar as pinturas e fotos da Professora Deveau ao longo dos séculos faz-me sentir como se estivesse viajando numa máquina do tempo. Igualzinho naquele filme do Tim Burton, quando Angelique Bouchard desfila diante dos quadros de suas antepassadas - que nada mais são do que representações dela mesma. Os humanos até que sabem das coisas... Sem saber.

Eu gostaria de ter visto a Professora Deveau com a roupagem da minha década. Mas, ao que parece, ela pulou essa. Os imortais mais velhos costumam fazer isso. Quer dizer, sumir por uns tempos... Penso que, um dia desses, terão que se desfazer de todos aqueles quadros e começar tudo do zero.

Bem, não é nenhuma novidade que os imortais mais velhos usem nomes falsos. Uma medida de proteção óbvia, necessária... Nós, os recém-iniciados, costumamos brincar de adivinhação: quem foi quem, quem fez o que nos primórdios da humanidade...

Naqueles tempos nebulosos, os humanos retratavam os imortais mais antigos como deuses sombrios, e lhes atribuíam denominações que deixam os "mais jovens" curiosos sobre suas verdadeiras identidades.

Será que entre os nossos professores haveria algum Hades, ou Áries...? Quem sabe Anúbis, Loki, Badb, e Macha? É... Poderia. Vai saber! De qualquer maneira, independentemente de quem eles foram num passado remoto, sumiram por centenas – alguns até por milhares de anos, só reaparecendo no radar humano de vez em quando. Aqui e ali. Lá e acolá. Estou falando dos primeiros, conhecidos em nossa raça como os deuses primordiais. Adriano é um deles. O único que conheço de vista. Os outros imortais se originaram da contaminação do sangue primordial. O que não significa que não são antigos como aqueles. Mas que surgiram por causa daqueles, se é que você me entende.

A Professora Deveau, por exemplo, não é uma imortal de sangue primevo, ou primordial. Contudo, ela teve a sua cota de desaparecimentos ao longo dos milênios... De todo modo, deve ter aproveitado bem o seu pequeno intervalo de dez anos. Agora, está de volta, encarregada de duas matérias: ACL para os imortais, como já mencionei antes; e Literatura Inglesa para os humanos. Às vezes, penso que seu rosto me é familiar de algum livro de história. Pode ter sido Afrodite e eu nunca vou descobrir. Droga. Ela é tão gostosa. Minhas escapadinhas aos corredores proibidos foram cem por cento para ficar babando pelos retratos dela.

Er... Bem... Por muito tempo, acreditei que a existência dos quadros fosse o principal motivo da proibição para cruzarmos aqueles corredores. Recentemente, contudo, descobri que eles constituem as principais vias de ligação entre as duas alas - a norte, onde estão os nossos alojamentos, e a sul, onde residem os humanos.

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