Um conselho do rei

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Nunca senti tanta falta do campo como agora, que as lembranças afloraram em minha mente. Sinto falta da fazenda. Do calor do sol. Do barulho do vento. Do sorriso terno de nossa mãe. Mas, não há mais lágrimas para que eu possa externar minha angústia. A tortura torna-se maior porque eu não posso dormir para esquecer. Não como os humanos dormem. Nosso sono é um processo complicado, e não convém explicar essa chatice agora.

Talvez a selvageria que dominava a mente de meu irmão fosse, no final das contas, uma benção para ele. Não tinha que pensar no que aconteceu, não tinha que lembrar... Não tinha que lamentar o que perdemos.

Quando tentaram alimentá-lo com o sangue frio, ele se revoltou de tal maneira, que pensei: É isto! Agora, eles vão concluir que não vale mais a pena mantê-lo vivo. Sean se jogou contra a cela, berrando sem parar. Ele vomitava uma gosma escura e mordia as barras até que começou a entortá-las.

Naquela mesma tarde, depois de quase enlouquecer todos nós com seus urros ensandecidos, um homem de branco apareceu, vindo do elevador. Ele olhou com pena para meu irmão, e apontou uma pistola estranha contra o seu peito... Eu congelei, imaginando que ele iria matá-lo. Antes que pudesse me mexer, ele atirou.

Heindall veio imediatamente para o meu lado, a fim de explicar sobre o que se tratava. A arma irradiava uma corrente em alta frequência que faria Sean "apagar" por dias a fio. Assim que ele parou de se debater, Heindall e o "enfermeiro" entraram na cela. Por meio de uma sonda oral, transpuseram o sangue frio das bolsas pela boca de meu irmão, até o estômago. Sean ficou paralisado, com os olhos abertos e vidrados de um animal recém anestesiado. Quando finalmente retomou o controle de seus movimentos, parecia mais calmo. E ao invés de gritar, rosnar, e chutar, ficou um longo tempo deitado.

O fato de ter se acalmado sensivelmente deveria ter me deixado menos preocupado. Contudo, ocorreu justamente o contrário. Percebi que Sean foi tomado por um terrível estado de apatia, o que me levou a considerar seriamente a possibilidade de que ele não conseguisse recuperar a razão.

Eu já tinha até perdido a conta dos dias em que ficou deitado na mesma posição... E foi quando eu já começava a perder as esperanças que cahill Adriano apareceu na minha cela.

-Como está passando, João? - Ele quis saber, inclinando a cabeça na minha direção.

O que ele queria saber...? Se a cada dia que passava, eu me sentia mais veloz e forte? Se fosse isso, eu estava ótimo. Em relação a Sean, eu me sentia péssimo.

-Eu não me sinto tão mal como no início. Mas a situação do meu irmão me angustia. Se ele não recobrar a consciência... Vocês pretendem...?

O cahill balançou a cabeça, confirmando meus piores temores. - Provavelmente, sim.

Algo se agitou dentro de mim – os meus novos instintos de predador combinados ao meu sentimento de irmão mais velho. O cahill deve ter lido no meu rosto, na minha postura, na cor dos meus olhos...

Os dele responderam, tornando-se lava derretida. Quando me dei conta, eu estava caído de joelhos, completamente prostrado. Eu não conseguia entender o que ele tinha feito comigo, sem que tivesse de levantar um só dedo.

-Acalme-se, João Walter Hume. - A voz dele adquiriu uma qualidade que me deixou tão nervoso, e desnorteado, quanto assustado. - Eu não pretendo lhe fazer mal. Mas não é prudente me desafiar. O melhor que você pode fazer para ajudar seu irmão é obrigá-lo a recuperar a consciência.

-Mas como...? - Questionei, num fio de voz.

Acho que meu tom humilde e vencido o sensibilizou, porque a expressão do cahill havia suavizado de repente, e seus olhos voltaram ao normal.

-Converse com ele. O tempo todo... Até que Sean dê indícios de que está escutando. Evoque os sentimentos que unem vocês dois. - Ele segurou as barras da grade com as duas mãos e aproximou o rosto concentrado e exigente. - Faça-o lembrar dos bons momentos...

Desviei os olhos, ainda me sentindo desnorteado e humilhado... Então, aquele era o misterioso e lendário herdeiro dos imortais. O poderoso chefe do clã Cahill e de todos nós. Achei-o surpreendentemente jovem - talvez apenas um pouco mais velho do que eu.

Contudo, a aura de poder diz outra coisa: ele já tinha vivido muito mais do que a maioria dos imortais. Adriano é uma presença desconcertante.

De repente, dou-me conta que ele veio especialmente para me ver. Por quê? Senti, mais do que compreendi, que havia um propósito naquilo; que ele estava me dando uma oportunidade que eu não deveria desperdiçar.

A grandeza de sua presença era palpável em todo o andar. Heindall mantinha-se calado e imóvel ao lado do elevador. Os outros confinados mal respiravam, apreensivos e fascinados, diante daquela figura poderosa... O silêncio que vinha das celas, em sinal de respeito à sua presença, só foi quebrado quando as portas do elevador se fecharam atrás de suas costas.

Eu tornaria a revê-lo somente anos mais tarde.

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Mas o conselho do cahill ficou martelando na minha cabeça, e eu decidi segui-lo. Foi assim que passei os meses seguintes falando com Sean durante horas e horas, todos os dias. Eu repetia incessantemente episódios de nossa infância e adolescência; recontando nossas aventuras e desventuras; e mencionando situações conhecidas apenas por nós dois.

Um dia, notei que havia algo de diferente na sua postura. Sean continuava deitado na mesma posição sobre o catre, porém, parecia mais inclinado para a minha cela. Seus olhos negros e vidrados também pareciam focados em mim.

-E aí meu irmão? - perguntei, sem esperar resposta. Já estava acostumado ao seu estado meio que catatônico.

Para meu espanto, Sean respondeu:

-Se você repetir nossas histórias de infância mais uma vez... Não sei como, nem quando, mas vou dar um jeito de te matar. - Ele fez uma pausa, engoliu com dificuldade, e acrescentou: - Estou com sede. Quando receberemos sangue?

Por alguns instantes, perdi a capacidade de falar. Apenas fiquei ali, olhando para ele... Então, ocorreu-me que Sean estava esperando pela minha resposta. Fiz uma varredura mental à procura de algum neurônio que não estivesse em estado de choque. Daí, eu me lembrei de que recebíamos os suprimentos no mesmo dia.

-Dentro de cinco dias – respondi.

Sean fez uma careta e revirou os olhos. Seu nariz estava escorrendo, como se ele ainda estivesse com febre. Sean catou um lenço de papel que avistou no chão, ao lado do catre, e o assuou.

-Porque me sinto péssimo, enquanto você parece tão bem?

-Porque eu nasci antes, e sou o melhor - respondi, brincando.

-Rá-rá!- ele devolveu, com ironia. – Você pode ter nascido primeiro, mas uma ova que é o melhor!

Eu soltei uma gargalhada de pura felicidade. Sem me dar conta do que estava fazendo, bati com as mãos na grade, até encontrar um ritmo e cantarolei Jailhouse rock. No início, só recebi caras feias dos meus companheiros de infortúnio. Sean revirou os olhos, porém, segundos depois, ele estava resmungando a letra da canção...

Let's rock, everybody, let's rock

Everybody in the whole cell block

Was dancin' to the Jailhouse Rock

Eu devo tê-lo contagiado, porque seu tom se elevou, fazendo coro comigo. Alguém gritou para que calássemos a boca e nós dois caímos na gargalhada.

-Essa é boa... - disse Heindall, meio irritado, meio divertido.

Aquilo tudo não deixava de ser uma ironia do destino. Afinal, Elvis se encaixava como uma luva ao momento que estávamos vivendo: confinados numa prisão, em algum lugar de algum lugar situado no subterrâneo... O que mais poderíamos fazer, senão deitar e rolar na cadeia?

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