Capítulo um

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A Queda.

O bule estava fervendo.

No andar acima Nina lia seu livro pacientemente sem se preocupar com nada além da fantasia que estava vivenciando diante de seus olhos. As portas estavam em sua maioria batendo de minuto a minuto com uma força suave obedecendo ao comando dos ventos da natureza, o barulho das árvores do lado de fora se misturavam com o doce canto dos pássaros. Sua mente estava navegando entre a literatura e o som da música natural, mas este estado de hipnose foi interrompido com o barulho do borbulhar do bule na cozinha abaixo, e assim, Nina teve que voltar sua atenção ao mundo real.

Seus pés agrediam as escadas da mesma forma que baquetas agridem os tambores, movida pela força do impulso de chegar rapidamente à cozinha; não poderia sujar a casa, não queria mais ter discussões com sua mãe.

Enquanto procurava um pano para pegar o bule fervendo ouviu de cima o barulho de sua gata, Aurora, caminhando sobre o tecladinho de seu quarto. De repente o barulho das portas pareceu mais estridente e os pássaros que ali cantavam apenas segundos antes se assustaram com a melodia arranhada, toda a aura de conforto de sua casa foi substituída por um pequeno caos causado pelo pequeno objeto. Ao desligar o fogão e pousar calmamente o bule sob a pia, Nina se acalmou do momento de fervor e pôs o chá numa pequena xícara decorada com flores tulipas. O doce aroma perpetuou-se no ar, ela o olhou como há um amigo tímido, do qual não se entende totalmente o que se passa por dentro, mas ainda assim vale a pena a aproximação.

Subiu as escadas, desta vez com mais calma e observou o líquido à sua frente, calculando o momento certo de tomá-lo. Assim era o seu chá, rodava devagar após o movimento rotatório da colher com sua fumaça exibindo seu esplendor, fazendo-se entender como algo delicioso, que exige cautela ao encostar os lábios, mas ainda assim prazeroso ao fazê-lo.

Seus pés desenharam o caminho de volta ao quarto, o ranger das escadas de verniz estava mais áspero e o vento assoprava mais frio quando o silêncio tomou conta do local e todas as portas jaziam fechadas; o clima estava realmente mudado em questão de segundos, algo estava errado.

Lá fora pode-se ouvir o trepidar do carro ao estacionar. Sentada de volta em sua cama Nina coloca Abel, seu pequeno ursinho de pelúcia, no colo e a xícara na escrivaninha ao lado da cama, olhou ao redor, para toda aquela decoração desgastada perdendo a cor e as manchas que denunciavam o traquejo daquele lugar.

O gemido da porta se abrindo tomou conta do local, como um arroto após a nota final de uma linda sinfonia. Lá de cima, Nina ouvia os pais chegando, primeiro o barulho de seus passos e depois finalmente, as reclamações. Apesar de não estar vendo os pais conseguia desenhar suas imagens em sua mente. Os lábios se movendo aceleradamente enquanto discutiam sobre a mesmice de sempre.

— ...então não tivesse tomado aquelas decisões ridículas, Leonardo — resmungou Lorena em tom irônico.

— Ridículas? Eu fiz o que precisava ser feito, não sabia que poderia ter dado nisso e você sabe muito bem disso. Eu já estou cansado de você jogando toda a carga para mim — rebateu Leonardo com uma gota de culpa e uma chuva de raiva em sua voz.

— Que carga? Você sabe muito bem o quanto isso me afeta, se não fosse pelas suas atitudes idiotas eu não precisaria trabalhar naquele lugar horrível e nem você precisaria desse emprego idiota em um bairro tão precár...

— PAREM! Parem, por favor, eu não aguento mais vocês brigando! — lamentou Nina com indício de lágrimas nos olhos, como uma piscina que está sendo enchida lentamente.

— Nina, não fale assim com a gente. Somos seus pais e merecemos respeito. Sua mãe e eu estamos tendo uma conversa séria, volte já para o seu quarto!

— Não! Eu não vou até vocês pararem de discutir!

— Nina faça o que seu pai pede, vá deitar filha, prometo que faremos menos barulho — a voz de sua mãe estava calma agora, não porque estivesse realmente controlada, mas sentia-se cansada demais para continuar com qualquer discussão.

A garota de cabelos ruivos desengonçados se postava eretamente sob o corrimão das escadas e se não fosse por sua altura e suas roupas infantis poderia ser facilmente confundida com um grande ditador totalitário. Estava prestes a argumentar que já ouvira aquilo antes quando ouvira seu pai se desculpar com ela.

— Ora, venha cá filha, desculpe-nos pelo barulho, por que não vamos assistir aquele desenho que você gosta?

Na sua voz havia verdade e o seu tom sofreu uma redução demasiadamente grande da rigidez anterior.

No andar acima, após Aurora ter saído do lado de Nina e se dobrado para perto do tecladinho jogado no chão, ela se moveu até perto da porta e ficou ali hipnotizada lambendo o chão onde se encontrava uma minúscula poça do líquido saboroso de camomila.

Mansamente, Nina levantou o joelho e empurrou o calcanhar para frente até que pousou a sola do pé no chão sem carpete, tomando um choque inimaginável por seu desatento.

Experimentou de repente uma dor árdua que a desequilibrou, a primeira coisa que sentiu antes da queda foi seu pé delicado visivelmente queimado na sola com a quentura do chá feito momentos antes.

E então, levou dos degraus duros cinco golpes espalhados pelo corpo que pareciam como facadas cortando sua alma, uma mais dolorosa que a outra, até que não sentiu nada.

A última coisa que viu foi o rosto de seus pais se estendendo de cima como se eles fossem Deus a convocando para o Céu, tudo ao redor estava claro demais para se identificar, e seu pai, ah... o seu pai...

Apesar de ultimamente estar rabugento, sempre foi extremamente gentil com ela. Piscou e mais uma vez viu a mãe, agora acompanhada do pai, dizendo coisas sem sentido; Nina não conseguia distinguir o que era, apenas via suas bocas se mexendo lenta e gradualmente com ar de desespero.

E então, escuridão total.

O Conto de NinaOnde histórias criam vida. Descubra agora