34. Ouvir

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- Vi, por favor abre a porta!

Nem tudo o que você vê, é verdade. Muitas vezes aquilo que é tão certo pra ti, é completamente o oposto do real pro outro e toda mágica acontece quando sabemos diferenciar ou até mesmo distorcer isso.

É aquela velha história da primeira impressão, de julgar o livro pela capa ou o caráter pela aparência, tudo leva tempo pra ser compreendido e você não pode simplesmente tirar conclusões em cima de algo que só observou, sem uma explicação razoável e um certo conhecimento, tudo o que foi visto pode ser distorcido, mas parece que Vitória não lembrou disso quando me mandou aquela mensagem.

- Vi por favor, eu sei que você tá ai. Abre a porta, vamos conversar! 

Não sei exatamente o que Vitória viu ou o que foi lhe mostrado, mas assim que recebi sua mensagem larguei tudo o que estava fazendo e vim atrás dela.. Nunca cheguei tão rápido ao seu apartamento quanto hoje e sei que burlei algumas regras no trânsito pra isso, mas pouco importa, minha única preocupação nesse momento é saber o que realmente aconteceu, e eu não pretendo sair daqui sem ter uma explicação pra tudo isso. 

Há algum tempo que eu e nem preciso me esforçar tanto assim pra lembrar desse período, eu me esquivava, me escondia e anulava os meus desejos para satisfazer os desejos dos outros, me colocando sempre em segundo plano. Passei tanto tempo me privando das minhas próprias escolhas que sinto como se toda etapa da minha vida destinada a submissão tivesse se esgotado, não tenho mais tempo a perder e muito menos a intenção de deixar que as coisas que escolhi escorreguem por entre os meus dedos, ou que simplesmente vão embora e me deixem aqui com lamentações e frustrações que eu mesma cultivei. Escolhas.

- Eu preciso saber o que aconteceu e ficar me evitando dessa forma não resolve nada, Vitória! Por favor abre essa porta, vamos resolver esse mal entendido, porque tenho certeza que tudo isso é só uma confusão desnecessária e que você está me deixando plantada aqui fora por menos que nada, ou talvez porque é meio sadomasoquista. - Estou batendo nessa porta há vinte minutos e só o silêncio angustiante, acompanhando dos olhares curiosos de quem entra e sai do elevador me fazem companhia, mas não vou desistir de entender o que aconteceu nem que pra isso eu tenha que acampar na frente dessa porta. 

Sento no chão, me apoio na porta fria e volto a ligar para Vitória pela décima vez e pela décima vez a tentativa falha.

Lidar com o silêncio é tão assustador quanto enfrentar o desconhecido e nesse exato momento estou dividida entre as duas sensações. Não sei o que me espera atrás dessa porta, não imagino o que está se passando com Vitória, e nem se quer sei o motivo de tudo isso, mas ao mesmo tempo que essas incertezas me assustam, o silêncio vindo de lá, faz crescer todas as teorias e inseguranças. Porque ela está me evitando? O que de tão grave pode ter acontecido? Será que esse é o fim de algo que parecia tão real? Passei tanto tempo em cima do muro da minha própria vida, sei o quanto é privilegiada a vista de lá, sem questionar, sem opinar, sem lutar, sem se fazer ouvir... É tão gratificante quanto enganosa, é cômodo se abster e deixar que os outros decidam o que é melhor por você, sem que tu tenha que mexer um só dedo, mas como toda carga tem um peso, toda ação tem uma consequência e eu não vou me esquivar disso, seja lá o que for.

- Vitória não pensa que eu vou desistir não, hein? Você pode me evitar o tempo que for, mas quando resolver sair da toca eu vou estar aqui.

Duas horas depois ouço passos no interior do apartamento, passos lentos e quase inaudíveis, mas como estou com o rosto grudado na porta fria, que nesse momento é igual ao coração de Vitória, eu posso ouvi-los. Ou pelos menos acho que posso, será que meu cérebro está me enganando? Eu li esse dias que o cérebro humano passa no máximo quatro horas por dia nos enganando, que ao longo da evolução foi descoberto que o cérebro pode mentir para o seu próprio dono, pode descartar informações, manipular raciocínios e até mesmo inventar coisas que não existem. Será que quero tanto um sinal de que existe uma alma viva dentro desse apartamento que estou ouvindo coisas onde não tem e me auto manipulando?

- Ana!!! - A porta que antes era tão sólida, abriu um espaço entre o meu corpo e eu caí deitada literalmente aos pés de Vitória. 

- Aiii.. Vitória!

- Achei que tu não estivesse mais aqui.

- Pois é, eu estou! Literalmente aos seus pés e é assim que você me trata?

- Não estou pra gracinha Ana Clara. - Mas que depressa ela se afasta e ameaça voltar a fechar a porta, mas eu não posso deixar que isso aconteça, então levanto o mais rápido que posso, entro no apartamento e a viro fechando a porta atrás de si.

- E eu não estou aqui pra ser condenada sem antes dar a minha versão dos fatos. - Sem falar uma palavra se quer, ela estende o telefone e posso vê uma conversa aberta de um número bastante conhecido pra mim com fotos e uma mensagem abaixo 'Observe uma família feliz.' Sei quem fez isso, sei o porquê fez isso e sei ainda o pra quê fez, mas não vou deixar que nada disso aconteça.

- Vi, nada disso é o que parece ser. - Vitória não parece muito disposta a me ouvir e eu deveria aceitar sua decisão, respeitar seu espaço, mas não posso ignorar que muito provavelmente ela está com pensamentos errados sobre essas fotos, não posso ir embora e não explicar a minha versão sobre essa fotos, não quero que ela se apegue em teorias falsas e que me crucifique por algo que não fiz. Então mesmo que me custe mais caro do que posso imaginar, vou me fazer ouvir.

- Tá, eu sei que essa é a frase mais clichê de todas, sei que essas fotos falam muito por si só, e que essa mensagem dar a entender que essa família tradicional aqui é a mais feliz de todas. Mas Vi, nada disso é real e eu tenho o direito de resposta, né? Eu posso te explicar tudo.

Sem muito falar e evitando ao máximo deixar transcender o que seu olhar diz, Vitória se afasta da porta, senta no sofá e fica alguns segundos só me observando. Posso jurar que ela está tentando de alguma forma ler meus pensamentos ou decifrar a mistura de sentimentos que me invadem nesse momento, porque enquanto seus olhos âmbar estão vidrados em mim, sinto toda a intensidade se duplicar e a coragem que era eminente desaparecer. Mas não vou desistir agora, esperei por mais de duas horas para falar com ela e esse momento chego!

- Acho que assim como eu, você tem muito o que falar, mas por favor me escuta!?











"Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil da nossa vaidade..."

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