Especial: Magno

15 3 0
                                    

A partir de algum momento não pude mais dizer com certeza o motivo pelo qual meu estomago revirava. Podia ser pela fome ou pelo balançar entediante da carroça. Mesmo me batendo de um lado para o outro me sentia fortuito de estar dentro dela, lá fora os soldados manchavam arrastando os pés. Cansados da batalha sem fim.

Guerra, isso me lembra o principal motivo para meu estomago embrulhar. Minha pequena Sophie. Ela ia completar doze anos quando a doença se alastrou, se eu estivesse lá teria chamado a curandeira, aquela a quem chamavam bruxa, estando na guerra não pude impedir aos loucos de tentar todo tipo de estranhos tratamentos. Diziam que minha menina estava sendo receptáculo do diabo.

Como poderia meu anjo se defender? Não há como. Por causa desta guerra vilas inteiras foram destruídas, a periferia foi a primeira a ser invadida, passamos semanas inteiras de uma cidadela a outra evitando a mata para não ficar sem suprimento. Estamos finalmente voltando para casa.

Forco a memoria em busca de algo mais profundo sobre o próximo destino. Abgetren, a cidade da ceda... está muito próximo a capital. Passei por aqui há dez anos, quando ainda era um soldado raso e minha filha era viva, e passo por aqui de novo agora e tudo mudou. Tudo menos essa cidade.

Havia duas avenidas de pedra, todas as demais ruas se dividiam em estradas de terra e veredas. Este lugar era um retrato de mim, nos dois paramos no tempo.

Em dez anos acumulei algum conhecimento, o mesmo que julgava ter há dez anos. Talvez meu erro fosse não diferenciar entre o sábio e o tolo, entre os quais há um mundo de distância. As vezes nem sei o que escrever em cartas como essas. As mulheres as chamam de diários, os homens de cartas ao vento.

.

.

.

Desde minha última carta renovo meu parco conhecimento. Não soubera eu, em qualquer outro momento, diferenciar duas crianças tão diferentes quanto semelhantes. Álya e Sophie eram iguais em tudo. O rosto, o cabelo, os maneirismos e os sorrisos. Álya deve ter a mesma idade que ela tinha, talvez menos.

Tento me conformar que talvez não sejam tão parecidas assim, mas a memória não me falta. Ora, um pouco mais e a levaria comigo. Isto e, se não estivesse tão severamente ferida.

Lembro do estupor que senti ao vê-lo. O ferimento era tão profundo que a menina mal se movia, e sua família padecia com a fome. Eu não poderia ajudar todos os órfãos feridos que encontrasse, mas eu poderia ajudar essa.

Novamente percebo meu egoísmo. Deixei muitos órfãos e agora desejo que uma criança me dê o amor que deveria ser de minha filha. Sou um homem sem lucidez. Volto ao mundo, para os problemas.

Meu soldado favorito, Bartolomeu, engravidou uma jovem plebeia, agora venho em nome do jovem órfão. Amber Dompteur logo se chamará Amber Gangnon se tudo correr bem. O pai está impaciente e a menina Amber chora.

Bato três vezes, sem resposta. Entro na casa. Aqui dentro e escuro como se a tempos o lugar não visse velas. Calado demais para uma casa que devia inda ter crianças. Entro devagar, cumprimentando um senhor que aparentava mais idade do que tinha, o pai de Amber.

- Boa tarde, general, a que devo a honra de vossa visita? – perguntou em tom quase sarcástico, encolhido como um rato encurralado. Kunz estava magro, tinha olheiras, e fedia o que só reforçava a ideia.

- Boa tarde, senhor. O jovem Bartolomeu, soldado que cuido como filho, deseja casar-se com a vossa terceira filha, Amber.

Kunz elevou a cabeça enfurecido -Depois de retirar-lhe a pureza? - grunhiu -O que teria um órfão para pagar o dote da mais formosa dama? -

-Quinhentas liras de prata- respondeu o general

-A cria será jogada aos cães assim que nascer, minha filha fica comigo, nem um homem de bem a desejaria- Magno teve ânsias, jogar um recém-nascido aos cães? Quão louco esta este homem?

-300 liras... de ouro- tentou o alto lance

-Como disse? A quem roubará seu soldado? - questionou indecifrável, descrente.

-Eu mesmo se lhe darei- disse firme.

-tenho uma condição, ele deve permanecer aqui. - o coração apertou, Bartolomeu o deixaria.

-feito- Bartolomeu merecia ter sua própria Sophie, apenas rezava para que não tivessem o mesmo fim.

.

.

.

Hoje é meu último dia na cidade. Vejo Álya uma última vez, ela está dançando com a lua e um ouriço. Cena engraçada. Desejaria levara comigo agora que já está melhor, mas não posso, Kunz não merece perder mais alguém.

Somos dois pais moribundos.

Eu vivo para minha esposa.

Ele vive para a filha.

Nem um de nós vive.

Apenas respira.

Enquanto afoga.

Álya - El Azabache [COMPLETA EM RASCUNHO - 1° ARCO] Onde histórias criam vida. Descubra agora