Ao chegar ao Moçambique eu já estava mais madura em relação ao que eu podia esperar. Já havia passado pelo Burkina e pelo Burundi. No primeiro eu vivi na extrema pobreza. No segundo eu vivi com mais conforto, no meio de uma guerra e aprendi as limitações dos bens materiais no que diz respeito à nossa segurança. Numa invasão tanto a casa luxuosa quanto a casa simples são abatidas pelas ferocidades dos soldados que não se comovem com as histórias que vão se perdendo.
No Moçambique a guerra já havia acabado. O projeto era de reconstrução. Reconstrução de casas, escolas, estradas, sonhos. A cidade onde morávamos era Quelimane. O centro da nossa organização ficava em Roma e tinha o escritório central em Maputo, capital do Moçambique. Ao deixar Torino eu possuía um capote pesado de lã, preto e comprido. Estava muito triste por deixar minhas amigas. Isso era normal. Eu sempre reagia assim nos momentos de partida. Meu sofrimento naqueles anos era devido à falta de continuidade nos locais onde eu permanecia. Isso era ligado à natureza da minha profissão.
Eu poderia estar num local e ser transferida para outro a qualquer momento. Somente anos depois pude entender que essa "incerteza" quando bem vivida é uma característica que nos ajuda a crescer enquanto pessoas. Eu era menos flexível do que sou hoje. Minha agenda era repleta de tarefas e nas listas que eu fazia sobrava pouco tempo para as descobertas, para os sonhos. Os africanos costumavam me dizer que eu tinha o relógio enquanto eles haviam o tempo. A casa do Moçambique ficava numa rua escondida, próxima à praça central. Nós morávamos no Campo Base; um recinto fechado onde alguns contêineres foram transformados em casa. Era muito estranho. Ao caminhar os objetos que estavam sob a mesa vibravam. Parecia uma caixa de papelão, frágil, pequena e sem conforto. A casa do projeto era de tijolos e fazia parte das casas construídas pelos portugueses que ali moravam antes da guerra. Muitas delas ainda possuíam utensílios dos antigos moradores. Outras, localizadas mais longe do centro estavam parcialmente destruídas: tetos esburacados, paredes derrubadas, panelas com restos de comida dentro.
Quem conhecia o Moçambique antes falava de um local que meus olhos procuraram e jamais encontravam. Era uma terra bonita e pacífica. A guerra mudou tudo. As pessoas pararam de estudar e a universidade abrigava os refugiados do conflito que tentavam começar de novo. Meu trabalho era nas escolas. Eu tinha dois assistentes que me ajudavam. Um era o diretor de uma escola e o outro um intelectual do local. Tenho boas recordações dessa nossa parceria. Aprendi muito com eles. Um era mais prático o outro mais cerebral e isso equilibrava as relações de trabalho.
Conseguíamos mesclar realidade e sonhos de um futuro melhor. Tínhamos 150 desmobilizados de guerra. Eram homens que foram combater muito jovens e cresceram por lá no meio dos campos abertos daquela África tão bela e tão sangrenta. Esses soldados, após a guerra ficaram sem uma função de trabalho dentro da sociedade. Eles possuíam as armas pesadas e antigas. Eles não tinham, porém, um trabalho, uma expectativa de vida futura. O governo italiano então criou um projeto de formação profissionalizante com cursos que poderiam ser usados para a reintegração dessas pessoas no mercado local. E assim, tínhamos o curso de reparadores de bicicletas, mecânico e marceneiro. Os instrutores foram selecionados pelos meus auxiliares. A equipe técnica construía a escola, poços e as casas para os professores. Eu seguia o relacionamento com o Ministério da Educação e com os professores que iriam se transferir para ali. Como tudo na vida, mesmo com boas intenções não conseguimos dar conta de tudo e alguns aspectos da realidade vieram à tona: Morumbala não tinha luz. Como pode um mecânico e um marceneiro trabalhar sem a corrente elétrica? Os professores que moravam em Quelimane não queriam morar em Morumbala. As escolas que construímos tinham uma parte elétrica prevista. Os poços que foram construídos eram próximos à cabana das famílias. Descobrimos depois que eles não os utilizavam porque a água do rio, mesmo sendo longe, tem o sabor da infância. Outro detalhe: a mulher africana de um vilarejo trabalha duro, muitas horas ao dia. Ter a possibilidade de pegar água próximo de casa não significa que ela irá desfrutar de mais tempo para si para ler uma revista ou dormir. As soluções que dávamos não eram erradas mas elas se perdiam porque não se adequavam aos aspectos da realidade local.
O local de trabalho era Morumbala, um distrito que ficava a seis horas de Quelimane. Durante esses deslocamentos a gente tentava encontrar uma posição cômoda dentro da Toyota, devido às péssimas condições da estrada de terra. Era uma viagem longa. A estrada de terra vermelha cheia de buracos causava transtornos em qualquer época do ano: na estação seca a poeira invadia a parte interna do carro, nossos ouvidos, nossas bolsas. Tudo ficava empoeirado. Na estação das chuvas a lama assolava o corpo e a alma.
Algumas pessoas, eu inclusive, ficaram com problemas de coluna devido à essas viagens. Além de longas as viagens não permitiam paradas. Não encontrávamos locais para tomar algo fresco ou comer alguma coisa. Na savana esses serviços não existem.
Tive uma pequena amiga moçambicana, de oito anos de idade que hoje deve ser uma moça que me cantava sempre uma canção de Miriam Makeba chamada Malaika. Eu gostava tanto de ouvi-la cantar! Ela me explicou sobre o que a música falava mas eu nunca entendi o significado completo, mas não faz mal. Certas canções não devem ser entendidas com a cabeça e Malaika é uma dessas. Anos depois, com a morte de Miriam me recordei do meu tempo moçambicano, da minha "caixa-casa" e da minha amiguinha.
Malaika (My Angel) - Miriam Makeba
Malaika, nakupenda Malaika Malaika, nakupenda Malaika Ningekuoa mali we, ningekuoa dada Nashindwa na mali sina we, Ningekuoa Malaika Nashindwa na mali sina we, Ningekuoa Malaika Pesa zasumbua roho yangu Pesa zasumbua roho yangu Nami nifanyeje, kijana mwenzio Nashindwa na mali sina we Ningekuoa Malaika Nashindwa na mali sina we Ningekuoa Malaika Kidege, hukuwaza kidege Kidege, hukuwaza kidege
YOU ARE READING
Uma Ponte Para Você - viagens e vida
Non-FictionEsse livro fala sobre a minha experiência de viagens pela Europa, África e Estados Unidos. Uma vida dedicada ao trabalho e às viagens. São memórias que divido com meu leitor sobre as diferenças culturais e experiências que me conduziram a ver a vida...