Capítulo 3. O Certo e o Errado.

249 5 2
                                    

Após aquele que alega ser Eu gerenciar alguns fatores que exigem muito de sua atenção, seu tempo livre se amplia. Rapidamente, preenche a ociosidade com atividades voltadas a aprimorar sua existência. Engaja-se em diversas ocupações visando sua proteção, incluindo o controle de indivíduos, seus pensamentos e suas ações. Assim, edifica cidades que crescem mais em extensão do que em desenvolvimento. Seu próximo torna-se mais próximo fisicamente, porém mais distante afetivamente. Deixa de ser um parente ou amigo, transformando-se frequentemente em um completo desconhecido, e a empatia torna-se menos frequente. A indiferença suplanta o remorso. A busca por grandes conquistas não se orienta por propósitos coletivos. Acumula poder, ostentação e autoestima. Rapidamente, faz uso da mentira como instrumento de manipulação. Sua competição assume caráter desleal. Imperceptivelmente, a exploração passa a ser considerada legítima. O caótico controle sobre as coisas não se traduz em melhor qualidade de vida para todos. A diversidade de transgressões cometidas aumenta gradativamente. Desloca as consequências negativas de seus planos efêmeros, impulsivos e irresponsáveis para que terceiros as assumam e revertam. Em uma autodeclaração constante de habeas corpus ilegítimo, desconsidera a justiça.

***

No domicílio de Eudes, após uma hora dedicada a dissipar da mente o odor de sangue, as imagens trágicas e as inúmeras incertezas, os quatro se reúnem na área culinária. Um tanto mais serenos, conseguem ingerir algo. O silêncio impera no recinto. A anterior atmosfera de contentamento na residência é suplantada pelo receio. O domínio sobre os destinos que imaginavam possuir é usurpado pela insegurança. O dinheiro e a maior parte dos bens perdem qualquer valia naquele instante.

— Vamos! — Eudes chama.

Em profundo silêncio, os quatro dirigem-se a uma noite de vigília e possível confronto armado. Eduarda experimenta a sensação de se encaminhar para um embate não declarado, sugerido por um jovem que mal conhecia.

O sol acaba de completar sua descida, e ao atravessarem a porta, percebem que o céu permanece tingido de vermelho. Agora, a aurora se revela numa beleza nunca antes contemplada por nenhum deles. Ficam imóveis e ainda em silêncio, observando o movimento de luz característico desse fenômeno.

Ao longo da noite, os quatro procuram abrigo nas residências dos vizinhos, envolvidos em conversas especulativas, e mantêm uma vigília regada a muito café. A noite transcorre relativamente tranquila, no entanto, distantes, são audíveis muitos gritos desesperados e súplicas por socorro. Na escuridão avermelhada, nota-se um lado mais claro, onde as chamas ainda consomem a aeronave e as habitações no local da queda. Diante de tudo isso e de um porvir incerto, todos se encontram profundamente inquietos e lacrimosos.

2º dia

Com o clarear do céu, prenunciando um novo dia, seu Francisco convoca Eudes e Eduarda para uma troca de palavras. Sem muitas delongas, ele se posiciona: — Olha só. A Maria me alertou. A luz não voltou. Ela testou as torneiras do jardim e não tem água na rede. A gente só tem água em casa por causa da caixa d'água. A comida vai apodrecer na geladeira, então, já já a gente vai ficar sem água e sem comida. E o pior: isso vai acontecer com todo mundo. Logo logo pode chegar um monte de gente querendo ver o que tem nessas mansões. E todo mundo sabe que nesse bairro toda casa tem piscina. Eles vão querer vir atrás da água de vocês. Mas essa água não dá pra todo mundo, então, eles não vão chegar pedindo. Acho que a gente devia ir lá pra minha casa. Posso conseguir dois cavalos com um amigo meu. São cem quilômetros até lá. O caminho pode ser complicado, mas quando a gente chegar, vamos estar mais seguros que aqui. Lá tem água de poço e os bichos que a gente cria. E não tem esse mundaréu de gente que vive na cidade grande. Todo mundo é amigo. Eu e a Maria vamos e a gente quer que vocês venham também. Se isso não acabar, vai todo mundo morrer aqui.

Eudes e Eduarda trocam olhares e entrelaçam suas mãos. Eduarda derrama algumas lágrimas.

Ansiosa, dona Maria diz: — Vocês me desculpem, eu não quero pressionar. Mas quanto mais a gente demorar, mais perigoso vai ser o caminho.

Seu Francisco completa: — Mas se vocês forem, vou precisar de algumas joias pra eu negociar o cavalo.

— Minhas joias por um cavalo? — Eduarda pergunta, confusa em meio aos soluços.

— E isso não garante que meu amigo vai aceitar a troca. O que ele vai fazer com ouro e prata se o mundo continuar assim? O cavalo tem mais serventia pra ele. Mas se tudo isso passar, ele tem o ouro. E você, o cavalo. É uma aposta que vocês dois vão ter que fazer.

— A gente precisa conversar — Eduarda cochicha no ouvido do marido.

— Não temos muito tempo — Eudes responde.

— Vem cá! — Eduarda puxa Eudes para um canto e desabafa: — Não podemos abandonar nossa casa e nossas coisas. Minha mãe pode aparecer aqui nos procurando e não vai nos encontrar. Não sabemos se a situação está igual no mundo todo. Você disse que deve ser só aqui na região. De repente, pode chegar ajuda de fora. Nossos filhos podem aparecer. E como vai ser o caminho? As pessoas podem estar ensandecidas pelas ruas. E tudo isso pode passar de uma hora para outra e nossa vida voltar ao normal. Eu quero ficar.

— Mas, amor, seu Francisco está certo. Aqui, a coisa pode se complicar. Agora eu não tenho mais certeza de quando esse apagão vai acabar. Se é que vai. O que faremos se demorar a acabar?

— Vamos nos ajudar. Podemos unir forças com nossos vizinhos. Podemos colocar as carnes para salgar, igual seu pai fazia, lembra? Tem muita água nessas piscinas. A gente usa cloro para tratar. É só economizar que conseguiremos. Uma hora, esse caos vai ter que passar. O filho dos Guerra deve saber muita coisa. Ele é do exército, não é?

— Eu não sei o que pensar.

— Então vamos ficar!

Mantêm um diálogo com o senhor Francisco e a senhora Maria. Expressam gratidão pela oferta, contudo a declinam. Dona Maria percebe a decisão como equivocada, porém, respeitosa, abstém-se de insistir.

O senhor Francisco vai de bicicleta até o bairro circunvizinho. Naquele canto, depara-se com todos os estabelecimentos depredados e alguns corpos prostrados no solo. Notadamente, tal bairro é reconhecido por sua periculosidade, e tudo sugere que as facções criminosas se aproveitaram da ausência policial para ajustarem suas pendências. Ele adquire o equino de seu amigo e, de maneira célere, distancia-se, retornando à residência de Eudes para adquirir provisões e buscar a esposa.

Depois de tudo arrumado, dona Maria se despede dos patrões, reforçando mais uma vez o convite: — Têm certeza que não querem ir? Ainda está em tempo.

— Não podemos — Eduarda explica. — Temos que ficar aqui para o caso dos nossos filhos aparecerem.

— Não sei, não. Eles devem estar bem lá no Velho Mundo. Mas está bom. Quando tudo isso acabar, a gente se encontra de novo.

Seu Francisco esclarece: — Não posso deixar minha arma com o senhor, seu Eudes. Posso precisar no caminho.

— Não se preocupe. A gente se vira.

— Se a selvageria ficar muito grande, tomem cuidado. E se precisarem, é só aparecer lá. Todo mundo sabe onde a gente mora. Fiquem com Deus. Tchau!

— Eles são especiais — Eudes comenta. — Ao contrário da maioria das pessoas que conhecemos, só se aproximaram de nós quando perdemos tudo.

— É verdade — confirma Eduarda.

Segredos, Evidências e um Limitado FuturoOnde histórias criam vida. Descubra agora