Capítulo 9. A Paz no Interior.

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A pré-humanidade jamais experimentou um período de tranquilidade global. As recorrentes instâncias de conflitos e guerras ultrapassaram em muito as necessidades de sobrevivência ou os impulsos de ira.

Os dilemas tiveram início quando os agrupamentos de pré-humanos progrediram e iniciaram a acumulação de recursos. A propriedade demandava proteção, pois havia aqueles que ambicionavam apossar-se dela. Para salvaguardar ou conquistar esses recursos, eram imprescindíveis instrumentos. Inicialmente, utilizavam paus e pedras. Com a descoberta dos metais, evoluíram para espadas e lanças. Com a invenção da pólvora, engendraram projéteis de diversos calibres. Atualmente, mísseis, armas nucleares, químicas e biológicas encontram-se ao alcance dos grupos pré-humanos que buscam a aquisição de riquezas por meio das guerras.

Concomitantemente a esse movimento, desenvolveu-se também o comércio, originado da simples troca de mercadorias. Com a entrada do ouro e da prata nesse sistema, as pessoas passaram a depositar seus valores junto aos ourives, recebendo em contrapartida um recibo como garantia. Esse documento passou a circular de mão em mão, originando a moeda. Em breve, surgiu o banco, o banco central e, por fim, o banco central dos bancos centrais. Este último, detentor de todas as posses, orienta as políticas dos governos e controla o destino das pessoas. Invariavelmente, o abastado subjuga o desfavorecido.

Num terceiro plano, a escravidão figura como prática antissocial, na qual um pré-humano reivindica uma falsa posse sobre outro, seja por hereditariedade, como prisioneiro de guerra, como quitação de dívidas, devido a uma hierarquia social, quer seja financeira ou de gênero, ou por pertencer a um determinado grupo étnico. O uso de armas e a exploração do trabalho escravo sempre possibilitaram o significativo acúmulo de posses por parte do explorador.

Observa-se que guerras, posses e escravidão sempre estiveram por trás do círculo vicioso antipaz que já ceifou inúmeras vidas. A fonte alimentadora varia ao longo do tempo. Já foram utilizadas terras, tecnologias, minerais e petróleo na tentativa de aplacar a insaciável fome de poder. Hoje, a ditadura das colossais instituições financeiras é responsável por todos os conflitos, pois qualquer povo ou governo que se oponha a esse monopólio é perseguido e aniquilado. Os dirigentes mantêm-se no pseudopoder sob a condição de colaborarem para que toda a humanidade seja subjugada como neoescrava desses senhores, afinal, quem toma emprestado é servo de quem empresta. Enquanto os pré-humanos permitirem as ações soberanas dos grandes tiranos, que atuam sem qualquer obrigação de promover o bem público, esses continuarão a buscar possessões, escravidão e guerra.

***

O conjunto prossegue ainda na área urbana. Dez automóveis, aproximadamente trinta indivíduos. Atravessam diversos veículos abandonados que permaneceram na via, com portas e capôs abertos. Quase todos saqueados. Observam-se diversos cadáveres, detritos e entulho pelas ruas. A velocidade é reduzida, pois necessitam contornar os obstáculos. E a jornada prossegue. A população não demonstra grande agitação, confiante de que o socorro chegará. Ao ultrapassar a fronteira estadual, deparam-se com duas viaturas policiais. Os militares permanecem eretos, com armas apontadas.

— Desçam do carro com as mãos na cabeça! — um deles ordena. — Coloquem as mãos em cima do capô e abram as pernas. O que vocês querem aqui?

— Fomos convidados — Eudes explica. — Seu Francisco e dona Maria, que têm uma chácara aqui, nos chamaram.

— A cidade não tem nada. Não tem nem pros moradores. Não dá pra dividir nada com estranhos.

— A gente veio ajudar. Eu entendo de elétrica. Minha esposa entende de administração. Cada um aqui pode ajudar de alguma forma.

— Seu Francisco não vai poder recebê-los, não. Ele é muito pobre. Apesar de ter passado dez anos na cidade trabalhando pra um povo rico, ele não conseguiu juntar dinheiro não, coitado.

Eudes e Eduarda deslizam a palma sobre a fronte, sustentando o fardo de suas consciências. O silêncio se instala, e o remorso se apossa de ambos.

Alguém toma a palavra: — Viemos trabalhar. Vamos ajudar o seu Francisco e a cidade também.

— A gente vai ter que escoltá-los até lá. E se ele não aceitá-los, vocês vão ter que ir embora.

Nesse ínterim, os forasteiros acompanham os agentes policiais até a propriedade rural. Eudes e Eduarda estão reflexivos. Experimentam um sentimento de culpa pela carência do casal que os serviu durante uma década. Consideram como poderiam ter permitido que permanecessem em estado de necessidade enquanto eles próprios prosperavam. Apesar de terem confiado até mesmo a educação de seus filhos aos cuidados deles, reconhecem como justo apenas o mínimo que está expresso nas leis trabalhistas.

Dona Maria encontra-se nos arredores da moradia. Ao vislumbrar a significativa quantidade de veículos se aproximando, sente-se surpreendida e apressa-se para chamar o esposo.

— Boa tarde, seu Francisco. Esse povo aqui disse que o senhor os convidou pra ficar aqui. Isso é verdade?

A ansiedade toma conta de todos. Conscientes de que o convite foi dirigido exclusivamente ao casal, seus empregadores, muitos conjecturam que, sem dúvida, o senhor recusará, resultando na expulsão de todos pela polícia.

"Se formos escorraçados, podemos ficar sem combustível pra voltar. Vamos ficar ilhados".

— É verdade, sim. Eu pedi pra eles virem me ajudar. Não sabia se os meninos estariam aqui. E eu ia precisar de ajuda. A cidade precisa. Aqui em casa eles são muito bem-vindos.

Uma sensação de alívio permeia a multidão, e o suspiro coletivo ecoa no ambiente. No entanto, o agente policial adverte com seriedade.

— Não quero ter que vir aqui pra resolver problema de turista, não. Se acontecer, vou prender.

— Pode ficar tranquilo. Estamos aqui pra ajudar. Se precisarem de algo e pudermos fazer, é só pedir — Eudes tenta tranquilizar o policial.

— O negócio está feio, cidadão. Se a gente precisar, a gente não pede. A gente manda — diz o policial, entrando na viatura.

— Pessoal, a gente não esperava esse tanto de gente. Vocês são bem-vindos aqui, mas não temos luxo. Todo mundo vai ter que trabalhar pesado. Não temos cama pra todos. Acho que não temos nem espaço, mas damos um jeito. Se a gente precisar, tem a casinha dos meus filhos que fica na vila. Agora que os carros estão funcionando, eles devem aparecer.

— Já está anoitecendo, seu Francisco. O que a gente tem que fazer? Vamos fazer um esquema de segurança?

— Aqui não tem isso, não. Pelo menos, ainda não. Vocês devem estar cansados com aquela agitação da cidade. Se alguém quiser tomar banho, tem um córrego e uma barragem ali em baixo. Banheiro é lá no mato. Tem muita manga no pomar. Estão docinhas. Amanhã, a gente tenta melhorar tudo. Podem descansar.

A tensão cedeu imediatamente. A ameaça de morte abrupta e a percepção de perigo imediato dissiparam-se. Agora, a cidade inscreve-se em um período de volta incerta. Contudo, a apreensão não os assalta. Percebem como se houvessem emergido do inferno, diretamente para o paraíso.

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