Chapter I - Voodoo Queen

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Minha risada ecoa pelas paredes da muralha a leste e pelos campos escuros. Eu me inclino, com as mãos apoiadas no parapeito, tentando recuperar o fôlego. Não consigo controlar. Uma risada sincera, que vem lá do fundo, toma conta de mim. Sai com um barulho oco, duro, empoeirado pela falta de uso. Minhas cicatrizes doem, despertando pontadas ao longo do pescoço e das costas, mas não posso segurar. Rio até minhas costelas doerem, então tenho que sentar para me apoiar na pedra fria. Isso não me faz parar, e mesmo mordendo os lábios para mantê-los fechados, risadinhas escapam de vez em quando. Ninguém além dos guardas pode me ouvir, e duvido que se importem com uma rainha rindo sozinha na escuridão. Adquiri o direito de rir, chorar ou gritar quando acho apropriado. Parte de mim quer fazer os três ao mesmo tempo. Mas a risada vence. Pareço louca, e talvez esteja. Certamente tenho uma desculpa para isso, depois de três semanas casada. Do outro lado, mais a oeste, as pessoas ainda estão limpando cadáveres. Os entes queridos dos guerreiros de Lótus ainda choram suas perdas, perdas desnecessárias. Froy preferiu sua coroa a tudo por que eu achava que estávamos lutando. A ferida sangra, e nenhum curandeiro seria capaz de curá-la. Ferida que preciso ignorar agora, pela minha própria sanidade. A única coisa que posso fazer é levar as mãos ao rosto, cerrar os dentes e lutar contra essa crise de riso idiota e infernal.
Isso é completamente insano. Majestade. Uma plebéia rainha.
Só pode ser piada. Digo isso em minha mensagem para Luce, que ainda está a salvo em Arcádia. Ela ia querer saber de tudo, ou tudo o que posso contar. Depois que a convenci a me deixar para trás, é mais do que justo que pelo menos a mantenha atualizada. E, é claro, quero que ela saiba. Quero que alguém dê risada comigo e amaldiçoe o que está por vir.
Solto outra risada sombria, recostando a cabeça na parede de pedra. As estrelas acima são como picadas de agulha, ofuscadas pelas luzes de Alhures e pela lua que nasce. Parecem assistir a tudo que se passa na cidade abaixo. E é então que meu fantasma volta aos meus pensamentos. Harry Wentworth: vivo ou morto?
Frustrada, passo as mãos pelo rosto e pelo couro cabeludo, deixando as unhas rasparem a pele. A sensação de ardor me traz de volta à realidade, pouco a pouco. Assim como o frio. A pedra sob meu corpo perde seu calor conforme a noite avança. O tecido frio do vestido cor de cobre, um dos muitos presentes de Amber, faz pouco para me impedir de tremer, e os cantos duros e pontudos das paredes são muito desconfortáveis. Ainda assim, não me movo. Eu poderia ir dormir, mas isso significaria voltar lá para baixo. Percorrer os corredores até os aposentos reais e vê-lo. Mesmo se eu fizer minha pior careta e correr, vou ter que encarar seus sentinelas, com toda a certeza. Consigo imaginá-lo esperando na minha cama, pronto para outro sermão. Mas não sei o que poderia dizer. O casamento de três semanas não fora consumado, e jamais seria. Se meu guarda estivesse aqui, estaríamos debochando disso, mas só pensar no nome já dói. Mudo o foco e volto minhas atenções para às janelas.
A lua brilha na pedra negra, fazendo os detalhes dourados de todas as torres e parapeitos parecerem prateados. Patrulhas passam abaixo de mim, vigiando tudo em seus uniformes vermelhos. Da Guarda de Alhures, percebo, e outros com vestimentas azul celeste. Adalberto, o rei de Alfambres, estava aqui.  Imagino o que Froy pensa disso. Ele se concentrou tanto em conquistar que só posso conjecturar o peso de ter outro rei rival como Adalberto. Tudo girava em torno de alianças ainda que meu marido parecesse ter tudo o que poderia querer. A coroa, o trono, eu. Ele ainda sentia aquela sombra. Trabalho de Octavius. Ele o moldou como queria, tirando e acrescentando na mesma medida. A obsessão dele ajudou a alimentar sua necessidade de poder, e tornou a do pai realidade.
- Vossa Majestade está esperando há muito tempo? - indagou a voz soturna e radiante de Ruby.
A bruxa retira seu capuz, revelando suas madeixas negras e seu olhar perdido. A princípio, tenho vontade de matá-la.
- Você prometeu vir após o casamento - vociferei - Passaram-se três semanas, Ruby. E você só decidiu mandar uma carta hoje.
- As coisas estavam complicadas, Cat. O ataque em Arcádia nos deixou com muitas baixas, como você mesma disse, eles são fortes - admitiu ela.
- Vocês poderiam ter tido vantagem, tinham o elemento surpresa, faltou planejamento - avaliei - Esse tipo de coisa não pode e tampouco irá mais acontecer.
- Estamos recrutando mais bruxas, nossas irmãs estão furiosas. Laios contatou o novo Inquisidor da Dália, estão queimando bruxas e mulheres inocentes como palha.
- Eu poderei interferir. Em breve começará a turnê de apresentação, eu e o meu marido precisaremos fingir mais do que já fazemos - sorrio - Se não me falha a memória, um dos primeiros reinos a serem visitados é Laios.
- Eu sinto muito por tudo, Catherine. Eu juro. Claude não me relatou todas as visões que teve, e quando o fez, já era tarde - a bruxa adiantou-se para perto de mim - Mas você pode derrubá-lo. Podemos derrubar todos, um de cada vez.
- É justamente sobre isso que estamos falando, não? - grunho - Diga às nossas irmãs que eu aceito a oferta. Serei a rainha vodu de vocês. Com uma condição.
Ruby sorri.
- Qual?
Era minha vez de sorrir. Nossos objetivos são os mesmos, ainda que nossas motivações difiram. Eu a deixo reflexiva, preparando-a para o que vou dizer.
- Luce e sua namorada, a princesa Mirtes de Arcádia, recebem isenção total de represálias.
- Feito. Você aprendeu muitas coisas na corte, Majestade. É mais esperta do que parece. Não vou subestimá-la de novo.
- Preciso que seja minha segunda, Ruby. E é então que minha verdadeira condição é imposta - revelo - Quando Froy for derrubado, quando tudo que ele mais preza for tirada dele, eu quero ser seu carrasco. Eu e somente eu poderei matá-lo.
- Que seja feito conforme sua vontade, Majestade.
Seus olhos penetram minha fachada, mas finjo não notar.
- O que houve com minha... Digo, com a rainha Abigail?
- Foi pega durante o levante. É uma prisioneira de guerra, Cat. Soube que ela está doente, muito doente.
Em sua voz, ouço as mesmas coisas que sinto.
Alívio. E pesar.
                              +++
Froy é esperto o bastante para ser deferente à visita do rei Adalberto, e juntamente com ele, ando alguns passos até a Sala do Trono. Faço como esperam de mim, me mantendo ao lado dele. Não nos tocamos. Não damos as mãos, nem os braços. A regra é dele, não minha. Ainda que por desejo meu, ele não me toque. A última vez que o fizemos foi um beijo frio enquanto uma tempestade se formava. Sou grata por isso, ainda que não o diga. Sei qual é meu dever como rainha, como uma ponte entre nossos reinos. É o dever dele também, um fardo que supostamente devemos aguentar. Mas se ele não falar nada sobre um herdeiro, certamente não serei eu a puxar o assunto. Para começar, tenho apenas dezessete anos. Atingiria a maioridade, claro, no fim de abril, mas ainda tinha tempo de sobra. Meu vestido arrasta no chão, deixando um rastro molhado no mármore largo. Há alguns minutos, eu e Ruby saímos sorrateiras pelas ruas. A luz do lua reflete nas pedras brancas. Meus olhos vão de um lado para o outro, absorvendo a imagem.
- Você está atrasada. Mandei chamá-la horas atrás.
A voz do rei sai baixa e fria, como a ameaça do inverno na primavera. Depois de tantas semanas em sua corte, estou começando a aprender um pouco sobre seus estados de humor, já que o estudo como estudei gramática. O rei Froy, o verdadeiro, não é uma criatura bondosa, e embora minha sobrevivência seja necessária para a aliança, meu conforto provavelmente não é. Ele não me trata mal. Na verdade, não me trata de maneira nenhuma. Ficar fora de seu caminho exige pouco esforço dado o tamanho do palácio. Com o tempo, ele foi se conformando com o abismo que agora existia entre nós.
- Aceite minhas desculpas, Majestade. Estava evitando-o. - respondo.
Ele se irrita diante meu escárnio. Entretanto, antes que possa responder algo, as portas se abrem. Próximo ao trono está Adalberto, sua coroa de diamantes brilha diante da luz dos candelabros.
- Amber?
Me choca notar que ele está se referindo a mim. Você se parece muito comigo. Quando for rainha e usar meus presentes, perceberá o quanto.
Eu usava a tiara que muito se assemelhava à coroa original de rainha, e de acordo com a minha predecessora, ela a usou por muitos anos. Era verdadeiramente linda. Na raiz do cabelo, uma águia minúscula fazia morada, indicando qual reino era a monarca.
- Celeste, Majestade. O vinho o deixou atordoado?
Alimentar seu ego não funcionaria, como costuma acontecer com outros nobres e cortesãos. Ele retorce os lábios, ainda desconfiado.
- Me perdoe, Majestade. O vinho realmente me subiu à cabeça - Adalberto sorri - Como minha presença no casamento foi rápida, senti a necessidade de retornar para Alhures e cumprimentar o casal.
Fique à vontade. Engulo a resposta com um desapego frio. Falsas formalidades agora são problema meu. Assim como as chamas seriam minha condenação.
- Claro. É muita gentileza de vossa parte.
- Tio, não sabe o prazer que é revê-lo - riu Froy - Onde está Marion?
- Estava muito cansada, preferiu permanecer em Alfambres.
Ele assente.
Um músculo se contrai na bochecha de Adalberto em sequência.
- Entretanto, devo admitir que minha vinda até Alhures não se resume apenas em congratulações.
Respiro fundo.
- Seus irmãos, sobrinho. Eles estão em Alfambres por um longo tempo, acho prudente retornarem.
Prendo a risada. Irmãos. Os filhos bastardos de Tiberias não eram irmãos de Froy, visto que o mesmo era uma farsa.
- Entendo e concordo. Por favor, tio, mande-os de volta para o lar deles - sorri o monarca - Será um prazer tê-los conosco.
Tento não parecer decepcionada, mas meus ombros murcham mesmo assim. Preciso provocar meu marido, deixá-lo às claras.
- Imagino que estejam apenas esperando uma carruagem - respondo - Por que não vamos buscá-los?
- Está se oferecendo para o trabalho, Celeste? - ele pergunta, olhando para mim. Fico tensa com a tolice do comentário.
- Sou uma rainha, não um cachorro brincando de ir buscar.
- Claro que você não é um cachorro, minha querida - Froy sorri sem se abalar - Cachorros obedecem.
Em vez de me retrair, ignoro o insulto descarado com um suspiro. Adalberto tenta disfarçar uma risadinha.
- Imagino que esteja certo, meu rei - então jogo a carta que guardei na manga - Afinal, tem experiência quando se trata de reféns, não de hóspedes.
Sinto o calor crescer ao meu lado, tão perto que começo a suar de imediato. Lembrar de Luce e Harry é um jeito certeiro de despertar seu mau humor.
- Acho prudente deixar que venham após a turnê de apresentação, querida - ele rosna, e percebo que é o máximo de destempero que vou conseguir - Não queremos ser deselegantes.
Eu considero nossa conversa um sucesso. Faço uma breve reverência e me retiro, não deixando a oportunidade de debochar passar. Froy está com ódio em seu olhar, porém, é mais do que somente isso. Vejo medo em tudo o que ele faz. Medo dos irmãos, principalmente. Medo porque eles, ainda que bastardos, têm sangue Lancaster. Tem medo do que representam. E, como todo mundo, morto de medo de perder seu poder. É por isso que estou aqui. Que casou comigo. E é justamente onde vou feri-lo. Meu marido vai fazer qualquer coisa para manter a coroa.
                              +++
Horas mais tarde, sou chamada até os portões grandiosos que se abrem para a baía, ladeados por guardas e cascatas. Os homens se curvam quando passo, e até a água se agita, incitada pela minha habilidade. Do outro lado dos portões fica meu pátio preferido: um refúgio amplo e bem cuidado de flores azuis de todos os tipos. Rosas, lírios, hidrângeas, tulipas e hibiscos — pétalas em tons que vão do mais claro ao índigo profundo. Ou, pelo menos, elas deveriam ser azuis. Mas, como as bandeiras, como eu, as flores estão de luto. Suas pétalas estão pretas.
- Querida, farei uma viagem rápida até Alfambres para comunicar meus irmãos da minha decisão - disse Froy - Até lá, meu tio será nosso hóspede. Tenho certeza que posso deixar Alhures sob sua soberania nata sem problemas.
Ele usa o tom da corte, assim como a eloquência da língua, para que Adalberto não tenha como interpretar mal seu pedido. Fique de olho nele.
Ele para e vira para o rei de Alfambres, em um simples gesto de cortesia. Não se pode dar as costas a um rei quando se quer algo dele. 
Não tenho a menor intenção de ser uma rainha mantida na rédea curta.
Froy abre um sorriso apertado e faz uma leve mesura. Perto do tio, com seu cabelo grisalho e suas rugas, parece mais jovem. Novo. Inexperiente. Mas não é nada disso.
- Deixarei os pombinhos a sós, com licença - o rei parte com passos longos e rápidos, quase fugitivo.
Ele fala bem, com palavras macias como algodão.
Se eu não tivesse nenhum controle, pegaria sua mão e correria. Mas tenho controle de sobra, e mantenho um ritmo estável.
- Você não precisa voltar - sussurro.
Minha voz falha.
- Quê? Por favor, minha querida - ele volta a falar nossa língua. Escárnio, desdém. Seus olhos se afiam, parecendo mais escuros nas sombras do templo estreito. Eu poderia afundar em seus poços profundos e nunca mais sair. - Não seja tão esquiva. Está brincando com fogo e acredite quando digo que você irá se queimar.
Ele se aproxima e segura meu rosto com sua mão monstruosa. Mesmo com meu gemido, ele não solta meu rosto, e seus dedões acariciam minhas bochechas. Por um longo momento, só fico ali. Vejo a esperança florescer em seus olhos e fecho os meus bem apertados. Devagar, ponho as mãos sobre a dele e a afasto.
- Eu já disse antes que preferia queimar a viver mais um dia neste inferno, Froy - disse - Você sabia.
Meu marido cerra a mandíbula, endurecendo.
- Não venha me dizer o que sei e o que não sei.
De novo, silêncio. Eu não respondo. Em contra partida, ele se recompõe, assumindo a postura real diante dos meus olhos. Parece endurecer e ficar ainda mais alto. Quase espero que se transforme em pedra. Ele vai mentir para você.
Este garoto é perigoso, vazio. Não tem alma. Matou o próprio pai, os dois. É uma questão de tempo até que sua própria corte o devore, ou o contrário. Seu reinado estava ruindo pouco a pouco e Adalberto seria a faísca que iria promover o incêndio.
- Até breve, meu rei.
                              +++
A Sala do Trono é quase um templo contíguo aos aposentos reais do monarca, é isolado e simples, localizado entre salas e quartos. A tradição está nos ornamentos de sempre. O lugar é tão grande quanto qualquer outro do palácio, tão ostensivo quanto. Apoio a mão em um dos braços do meu trono, mas é a janela que me é familiar e fico esperando. O sol nascente parece fraco ao atravessar o vidro grosso de diamante, com vidraças dispostas em formato de ondas. Só quando as portas se abrem, percebo que meu pedido foi atendido rapidamente.
O chefe da Guarda, o oficial Deacon, se curva diante de mim.
- Vossa Majestade solicitou minha presença? - indaga ele, hesitante.
- Sim, oficial. Preciso que você e alguns de seus homens iniciem uma varredura, uma busca, por alguém. - informei.
- Posso saber quem, Majestade?
- O capitão Wentworth, oficial. Preciso de informações precisas, e claro, confidencialidade total.
- O rei sabe de vossa ordem?
- Não, e deverá permanecer assim.
Adalberto adentra na sala, já vestido com outro traje, desta vez, um sobretudo azul marinho.
- Imaginei que a rainha pudesse estar aqui - ele sorri.
O ignoro.
- Você entendeu minhas ordens?
- Perdão, Majestade. Não posso executar ações dessa magnitude sem o conhecimento do rei.
- Eu sou a rainha de Alhures e você é meu súdito! - bradei enquanto levantava, fazendo ambos tremerem - Nunca se esqueça disso: na ausência do rei, quaisquer ordens que eu der só podem ser anuladas pelo mesmo. Não há o que contestar, oficial.
- Perdão, Majestade.
- Faça o que disse imediatamente e não ouse voltar sem novas informações - finalizei, descendo a breve escadaria - Caso contrário, que Deus e sua rainha tenham misericórdia da sua alma.
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Com um acesso de fúria, arremesso o centro que jazia no meu quarto para os ares. Ousavam em questionar minha autoridade, a coroa não me fez menos mulher ao olhar dos homens. Respiro fundo, canalizando o fogo em minha lareira. Meus poderes estavam tão enjaulados quanto eu e o desejo de ambos era a liberdade. Com a breve ausência de Froy, poderia achá-lo. Poderia, inclusive, considerar uma fuga após isso. Fecho os olhos e visualizo Harry, meu grande amor. Ele não podia estar morto, não podia. E não estava.
As portas se abrem e os guardas deixam passar uma figura familiar. Seus cabelos estão soltos, o que é uma raridade. Suas vestes são azuis, seu olhos castanhos estão arregalados e seu semblante é de puro desespero. Luce tremula ao meu toque, minha dama de companhia sequer consegue falar.
- Lucinda, o que houve? O que está fazendo aqui?
- Mirtes... O rei Otto abdicou do trono. Mirtes é a rainha de Arcádia, não podemos mais ficar juntas.

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