Esme tremia, mas ainda conseguia falar e proteger Evangeline com seu próprio corpo. A protegia de mim, do que estava no meu ventre. Todas nós fomos crianças um dia, ainda aprendendo nossas habilidades, com medo da fogueira. Mas a criança vodu não. Essa era uma das histórias que se contavam ao redor de uma fogueira. Significava não criar certas coisas, acima de tudo, porque algumas criações são incontroláveis. Tive que engolir a bile que estava em minha garganta quando imaginei o que ela havia descrito. O próprio Diabo.
- Eles eram muito lindos - Esme explicou rapidamente, vendo minha reação - Tão amáveis, tão encantadores, você não conseguiria imaginar. Só era preciso estar perto deles para amá-los; era algo automático. Contudo, eles não podiam ser ensinados. Suas habilidades não eram específicas, eles podiam controlar tudo.
Engoli em seco.
- O Coven estudou as crianças vodu ao redor do mundo. Só houveram relatos de duas - continuou Ruby - Quando localizamos você, percorremos toda a mitologia. Pensei que a criança vodu fosse apenas isso. Um mito.
- Mas é um bebê, por Deus - disse Evangeline - Ele não pode ser mau!
- Eu lhe disse que eles eram adoráveis. Bem, bandos lutaram até o último homem – foram completamente dizimados – para protegê-las - Esme murmurou - A carnificina não foi tão generalizada em guerras como a do sul deste continente, mas mais devastadora à sua própria maneira. No final, as crianças vodu se tornaram um tema que não se podia mencionar, um tabu.
- Quando morei em Laios, encontrei dois grimórios, minha mãe, Aro, estudou os pequeninos por muitos anos após a catástrofe provocada por eles. Eles são letais, Majestade - afirmou Esme - Você dará luz ao fim do mundo.
- Eu não... Eu nem...
Minha voz estava petrificada, meus sentidos totalmente entorpecidos. Eu estava grávida. Eu seria mãe. Como? Quando? Froy? Harry?
Claude entrou no salão, seus olhos estavam inexpressivos, mas ainda assim urgentes. Ela segurou minha mão com força, compartilhando seu dom comigo. Eu não sei exatamente em qual momento a memória se transformou em sonho. Num momento parecia que eu estava ouvindo Claude em minha mente, olhando para o seu rosto, e então no momento seguinte eu estava olhando para um campo cinza e árido e sentia o cheiro denso de incenso no ar. Eu não estava sozinha ali.
A mistura de figuras no centro do campo, todas cobertas por uma capa escura, devia ter me aterrorizado. A Inquisição. Mas eu sabia, como algumas vezes acontecia nos sonhos, que eu era invisível para eles. Espalhados ao meu redor estavam montes de fumaça. Reconheci o cheiro doce no ar e não examinei o esfumaçado muito profundamente. Não tive nenhum desejo de ver os rostos de quem eles tinham executado, um pouco temerosa que eu pudesse reconhecer alguém por entre as chamas. Os inquisidores pararam em um círculo ao redor de alguma coisa ou alguém e pude ouvir suas vozes sussurradas sobrepondo-se à agitação. Fui na direção das capas, levada pelo sonho para ver que coisas ou pessoas eles estavam examinando com tanta intensidade. Olhando cuidadosamente por entre dois encapuzados altos, finalmente vi o objeto do debate, subindo em um pequeno morro atrás deles. Era um garoto. Bonito e adorável, como Esme tinha descrito. O garoto era ainda uma criança, talvez tivesse até dois anos de idade. Cabelos cacheados em tom castanho claro enquadravam seu rosto de querubim com bochechas redondas e lábios cheios. E ele tremia, seus olhos fechados como se receasse assistir sua morte se aproximar a cada segundo. Fui tomada por uma necessidade tão forte de salvar a criança linda e apavorada. Passei por eles, sem me importar se me notariam. Ultrapassando-os completamente, corri em direção ao menino. Cambaleando, parei e pude ter uma visão clara da elevação onde ele se sentava. Aquilo não era terra e rocha, mas uma pilha de corpos humanos, drenados e inanimados. Era tarde demais para não ver seus rostos. Luce, Mirtes, Harry, Ruby, eu mesma. O garotinho matara todos nós.
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Ficamos em silêncio por um longo momento. Pelas janelas, Arcádia se estende à nossa frente, cheia de gente, mas parecendo vazia. As consequências estão claras, as linhas foram nitidamente desenhadas. Ruby e Esme me encaram com a mesma intensidade, e eu as encaro de volta.
Queria poder esquecer a última hora. Voltar só um pouco atrás. Vacilar. Hesitar. Desfrutar por mais um segundo da estranha paz de sentir apenas a dor dos músculos cansados e dos ossos reparados. O vazio depois da adrenalina. A preocupação passa pelo rosto de Ruby. A expressão não combina com ela. Estou mais acostumada à determinação fria ou à raiva. Sei que nota meu olhar pelo leve retorcer de sua boca marcada por uma cicatriz.
- Precisamos chamar o Sr. Wentworth.
As palavras saem uniformes e cheias de determinação.
Preciso parecer forte, mesmo que não me sinta assim agora.
- Provavelmente - Esme diz, pensativa.
Ela estreita os olhos para o chão. Não à procura de algo, mas para se concentrar. Um plano se desenrola à sua frente. O caminho adiante não é fácil. Qualquer pessoa saberia disso.
Solto um suspiro trêmulo e engulo em seco diante do pensamento que se segue.
Vão matar este bebê.
Cerro o punho, enterro as unhas na pele e me satisfaço com a dor aguda. As paredes escuras do abrigo parecem estranhamente silenciosas e nuas sem o cerco. Desvio os olhos da figura de Esme se afastando e foco nos parapeitos da ala interna da fortaleza. A tempestade de neve congelante já passou faz tempo, a escuridão se dissipou, e tudo parece menor agora. Menos opressivo. Não deveria doer tanto quanto a possibilidade de morrer, de perder a guerra, de que tudo pelo que trabalhamos seja em vão. Mas dói. Tudo o que posso fazer é tentar suportar.
- O que vocês pretendem fazer? - indago.
- O bebê é seu, Cat. Se disser que isso é apenas um mito, lutaremos por ele e por você até o fim. Caso você decida que ele precisa ser sacrificado...
Ruby não consegue terminar a frase, mas ela fica explícita.
Recuei diante de sua oferta. Me afastei dela.
- Cat? - Harry entra no recinto.
Ele se movimenta, chamando minha atenção. Suspira e apoia as costas na parede, cruzando os braços. Diferente das bruxas, não se deu ao trabalho de trocar o uniforme. O dele, sem poeira ou lama, não está tão nojento. Mas há s nele, claro, que secou e parece preto. Me faz querer vomitar. Esme repete o conto mais uma vez, e agora, atento para os detalhes. Os relatos são de tempos remotos, um deles inclusive antes da Dália ser criada. Há esperança. Harry solta um ruído gutural no fundo da garganta, como um rosnado. Então endireita os ombros largos e vira para encarar a torre em sua totalidade. Imagino o esforço necessário para se conter e ficar ali em vez de marchar até lá e arrancar os olhos de Esme. Eu não ia impedir se ela o fizesse. Na verdade, puxaria uma cadeira e ficaria assistindo. Relaxo um pouco os dedos. Em silêncio, dou um passo à frente, me aproximando dele. Após uma fração de segundo de hesitação, toco seu braço.
- Pense pelo lado positivo - disse - Isso vai nos dar alguns meses para debochar. Estarei idêntica a um balão.
Harry fica parado um instante, e sua careta se transforma num leve sorriso.
- Você vai ser uma mãe incrível, Cat.
Abro um sorriso dolorido.
- Seremos.
Normalmente, eu esperaria que ele zombasse e desdenhasse da mera sugestão de que talvez não pudesse.
- Só me pergunto onde isso vai acabar - murmuro, esperando que me entenda.
Harry balança a cabeça.
- Vamos cavar mais fundo. Entender o que isso significa, achar bruxas mais velhas, anciãs, percorrer todos os cantos da Dália - ele sorriu - Nosso filho não é mau.
Os olhos de Esme se arregalam, vibrantes e quase irreais.
- Você quer que eu o deixe viver?
- Se você quiser continuar viva, eu sugiro que se afaste - vocifero - Ninguém vai machucar a mim e ao meu bebê.
Ela vira de repente, escondendo o rosto, não rápido o bastante para esconder as lágrimas. Mas elas não caem.
Insisto. Tenho que insistir. Ela precisa me ouvir.
- Você vai arrecadar mais informações e trazê-las direto para mim. Entendido?
- Você não entende...
- Eu sou sua rainha, quem não entendeu alguma coisa aqui foi você - me desvencilho de Harry - Espero que não tenhamos mais nenhum tipo de desentendimento, Esme.
Evangeline se levanta, assentindo ao meu pedido e levando Esme consigo.
- Estou orgulhosa da que você fez - Ruby revela.
Franzo a testa.
- Você me ouviu, Majestade?
Ela funga e força um sorriso, virando de novo para revelar o rosto agora vermelho.
- Eu disse que estou orgulhosa de você. É melhor anotar. Guardar na memória. Provavelmente não vai me ouvir falar isso de novo.
Contra vontade, solto uma risada sombria.
- Certo. Orgulhosa do quê, exatamente?
- Bom, além do seu grande talento para se vestir…
Ela passa a mão no meu ombro, espanando a poeira ensanguentada.
- Estou orgulhosa de você porque sei como é lutar por alguém que se ama, mesmo contra todas as probabilidades.
Ela me pega pelo braço, provavelmente para que eu não fuja de uma conversa que não acho que esteja preparada para ter. Foco no queixo de Ruby para não ter que olhar em seus olhos. A cicatriz no canto esquerdo de sua boca é profunda, repuxando o lábio de leve. Um rasgo regular, feito por uma faca. Ela não tinha essa cicatriz quando nos conhecemos, à luz do incêndio na igreja de Dom Solomon.
Uma nuvem cruza o céu, lançando sombras sobre nós duas. A brisa sopra estranhamente fria. Tremo. Como se por instinto, penso em Froy e suas mãos quentes e urgentes. Meu estômago se contorce, cansado de recordar o que deixamos para trás.
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Luce.
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Alhures (#2)
Historical FictionEm poucos meses, a vida de Catherine Millstone mudou completamente. Todo o caminho que percorreu até a sua coroação não foi uma coincidência, agora ela sabe. Enquanto usurpava o lugar da princesa Celeste, ela foi obrigada a fingir ser uma nobre, e p...