Chapter V - Hearts Still Beating

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Os guardas se movem rápido, subindo para a plataforma com uma fúria controlada. Eles percorrem a distância entre nós com poucos passos decididos, até seus olhos serem a única coisa no mundo. O pavor percorre o semblante de Dylan quando ele constata o fato imutável. E então sinto o peso do que fiz. Froy surge, o sorriso em seu rosto é tão brilhante quanto uma moeda de ouro.
- Olá, duque. Enfim podemos tirar as máscaras - sussurra meu marido.
- Podemos, Majestade? Podemos dizer a todos quem Froy de Lancaster realmente é?
Ele friza o sobrenome da casa regente de Alhures como um aviso. E uma ameaça. Ele sabe, e seu silêncio custará caro. Todavia, Froy não era um homem que aceitava chantagens. Ele sequer era humano.
Penso em pedir misericórdia pelo  duque, ainda que implorando não vá adiantar nada. Suplicando, ainda que fira meu orgulho pensar que estou pedindo algo para ele. Mas o que posso fazer? Dylan é um traidor. Ele vai ser torturado, submetido à imaginação fértil do rei. Quantas pessoas ainda vão morrer por causa de mim?
Meus olhos alternam entre Dylan e Froy. Este é indecifrável, mas pelo menos olha para mim. Isso é bom. Se ele não vai salvar o bastardo desse pesadelo, quer que eu veja o que vai acontecer.
Estou sozinha. E Dylan já está morto.
O guarda o pega pela garganta, pressionando uma coleira, me obrigando a encarar seus olhos vis e familiares.
- Você errou ao tentar me trair, irmãozinho - ele diz, sem se incomodar em medir as palavras.
Ele se aproxima, sedento, um homem faminto prestes a devorar a refeição.
- Agora vai pagar caro por isso.
Os guardas saem do recinto. A princípio não entendo o que isso significa, mas logo ouço Dylan gritar. Froy está usando sua habilidade.
Consigo senti-lo. Ele compartilha, de algum modo, seu poder comigo. Posso saber de forma intrínseca o que ele faz e como faz. É uma perversão, uma podridão, um câncer. Ele raspa a cabeça de forma incisiva. Todas as partes do homem que ainda não foram pegas por seu veneno se contorcem de dor. O rei está gostando. Esta é sua vingança, afinal. Sua fúria me faz girar sem ter onde me segurar, presa numa tempestade que não consigo controlar. Outro inimigo morto não faz diferença para ele. É apenas mais um obstáculo em sua guerra, mais um corpo sem nome e sem rosto. Quantas vezes já teria feito o mesmo?
Sei o que vem em seguida, mas por mais que me esforce, Froy não me deixa fechar os olhos. O grito agudo de Dylan me faz arrepiar.
Algo dentro de mim irrompe e o céu reage. A chuva desce e as lágrima também.
Veja o que você fez. Veja o que você fez. Veja o que você fez.
Froy perpassa tudo com desenvoltura.
Veja o que você fez. Veja o que você fez. Veja o que você fez.
Então ele para. O duque cai no chão, exaurido, provavelmente. Froy é mais cruel do que sequer poderia prever. E minha presença aqui é apenas para provar o que ele disse: somos iguais. Eu não podia mais lutar contra isso.
- Os guardas o levarão até sua cela, irmão - Froy sibilou, sorrindo - Até nosso próximo encontro.
                             +++
- Eu soube que o juiz da Dália está a caminho de Alhures - sussurra Luce, seus dedos percorrendo meu cabelo - Aquele homem me dá calafrios.
- É culpa minha, Luce. Eu fiz aquilo. Eu o entreguei para Froy numa bandeja - as lágrimas hipócritas insistem em descer - Eu fui o carrasco de Dylan.
- Isso é horrível de se dizer, mas você fez o que precisava ser feito - ela afirma - Ainda que tenha sido uma crueldade, o duque planejava sua morte, Cat. É óbvio, até. Ele jamais deixaria uma monarca que soubesse de seus atos viva, ainda mais quando precisava culpar alguém pelo crime que cometeu.
- O Juiz da Dália... O que ele fará? Nunca estive em um júri.
- Basicamente, ele é a representação da lei teoricamente imparcial da Dália. Baseado nas evidências, ele determinará qual penitência será executada no duque Dylan - Lucinda tossiu - Prisão perpétua, forca ou no pior dos casos, a guilhotina.
- Meu Deus - passo as mãos no rosto, arrancando junto com elas as cenas da minha mente.
- E é provável que você seja intimada como uma testemunha - ela finaliza.
- O quê?
- Sim, Cat. Você é uma rainha, e também foi a nobre que estava presente quando tudo aconteceu.
- O que eu preciso dizer?
- Você e Froy precisam estar de acordo, digo, a versão da história precisa ser a mesma para ambos - ela se levantou - Você fará o juramento, e então relatará como o comportamento dele era suspicaz e de quando começou a suspeitar que ele estivesse tramando um levante.
- Então precisarei fazer o que faço de melhor: mentir - tenho a audácia de rir - E então poderei encontrar Harry.
A expectativa enche meu coração de algo essencialmente puro.
- A pedreira de Angór - Luce murmura - Escutei muito sobre ela na minha infância. O rei Augustus não costumava mandar ninguém para lá, a maioria dos criminosos cumpria a sentença com a forca.
- A prisão perpétua que você se referiu a pouco... É a pedreira?
- Sim. Angór era o nome do assassino serial que rondou essas terras décadas atrás - ela continuou - Ele matou mulheres, homens, crianças... Não fazia distinção social, era um lunático. Foi o primeiro criminoso a ser mandado para a pedreira, e dizem que até hoje vive lá.
- Se faz muitas décadas, esse homem deve estar morto - sussurro.
- Pelo bem de Harry, eu espero que sim.
Luce não me olhou nos olhos e tampouco precisou. As palavras de Claude ressoaram na minha mente. Ácidas e aterrorizantes.
O rei de Alhures o mandou para lá, pois sabe que é um destino pior que a morte.
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Ficamos em silêncio por um longo período de tempo. Até que o juiz da Dália tomasse posição, pude ajeitar minha coroa. A tiara fazia falta, minha sanidade fazia falta. Alhures se estende à nossa frente, cheia de gente, mas parecendo vazia. Momentos como este fazem todo um reino se reunir e Froy está mais lindo do que nunca.
Dividir e conquistar.
Estamos em um patamar elevado, como pede a hierarquia. As consequências estão claras, as linhas foram nitidamente desenhadas. Dylan e Froy me encaram com a mesma intensidade, e eu os encaro de volta. Imagino que Dylan não tenha ideia, nem uma suspeita, de que Froy não tem a menor intenção de o deixar próximo de qualquer trono. Por isso Adalberto não está aqui. Imagino que se importa mais com a coroa do que com o que qualquer nobre pensa. Queria poder esquecer as últimas horas. Voltar só um pouco atrás. Vacilar. Hesitar. Desfrutar por mais um segundo da estranha paz de sentir apenas a dor dos músculos cansados e dos ossos reparados. O vazio depois da adrenalina. A preocupação passa pelo rosto do duque. A expressão não combina com ele. Estou mais acostumada à determinação fria ou à raiva vindas de Dylan. Sei que nota meu olhar pelo leve retorcer de sua boca marcada por uma cicatriz.
O juiz assente e o julgamento se inicia.
- Muito bem. Acho que os generais Batedor e Cisne já devem ter uma ideia dos acontecimentos. Estavam acompanhando a rainha Celeste desde que a mesma se tornou parte do inquérito. Vossa Majestade jura dizer a verdade, só a verdade e nada além da verdade?
- Sim, Meritíssimo.
O juiz faz sinal para que eu prossiga. Me levanto.
- Dylan de Lancaster esteve hospedado em nossa corte por um breve período de tempo. A princípio, tentei ignorar seu comportamento esquivo e seus olhares curiosos, mas minha omissão levou a isso. Aceite minhas desculpas, meu rei. Meritíssimo. - digo.
De alguma forma, minha voz não vacila. As palavras saem uniformes e cheias de determinação. Preciso parecer forte, mesmo que não me sinta assim agora. É uma mentira, mas uma boa mentira.
- Ele deve ter mais informações do que fui capaz de fornecer.
- Provavelmente - o juiz diz, pensativo - Suas desculpas estão aceitas, Majestade.
Ele estreita os olhos para o chão. Não à procura de algo, mas para se concentrar. Um plano se desenrola à sua frente. O caminho adiante não é fácil. Qualquer um saberia disso.
- E por isso mesmo ouvirei o que tem a dizer, Alteza - ele diz, referindo-se ao duque.
- Olhos e ouvidos atentos - Froy sussurra.
O juiz se afasta, saindo pela viela estreita. O sol reflete em seu cabelo grisalho brilhante. Tudo isso para manter a fachada calma, controlada e estranhamente comum de sempre. Uma sábia decisão. Nobres devotam muita energia à aparência, a ostentar a força e o poder. Principalmente o rei e sua corte.
Solto um suspiro trêmulo e engulo em seco diante do pensamento que se segue.
- Meu plano sempre foi usurpar o trono, Meritíssimo. Eu sou um Lancaster, um Lancaster verdadeiro.
O testemunho do réu reverbera na platéia.
Tiberias, tento me lembrar. Cerro o punho, enterro as unhas na pele e me satisfaço com a dor aguda. As paredes escuras do castelo parecem estranhamente silenciosas e nuas sem o cerco. Desvio os olhos da figura do juiz se afastando e foco nos parapeitos da ala interna da cidade. A escuridão se dissipou, e tudo parece menor agora. Menos opressivo. Soldados costumavam ser reunidos nesta cidade, em geral para marchar para a morte inevitável nas trincheiras. Agora patrulham as muralhas, as ruas, os portões. Sentam-se com reis para falar de guerra. Alguns soldados rubros passam de um lado para o outro, seus olhos incansáveis, armas desgastadas à mão.
- O quer dizer com isso, Alteza?
Froy revira os olhos.
- Sua Majestade não é um herdeiro legítimo do trono de Alhures. A falecida rainha Amber foi estuprada, o pai verdadeiro do rei é Octavius de Knollys.
- Jamais escutei tamanha sandice, Meritíssimo. O réu além de traidor é também um mitômano?
Froy arranca a risada de todos, inclusive uma disfarçada do juiz.
- Em consonância a tudo que já foi dito, e a assunção do réu, eu o declaro culpado.
O burburinho retorna, desta vez mais intenso.
- Silêncio! - o homem brada - Eu ainda não terminei.
Engulo em seco. A sentença.
- Pelos poderes a mim concedidos, sentencio o réu, Dylan de Lancaster, duque de Cásares, à prisão perpétua na pedreira de Angór.
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Ilhures ficava depois da próxima curva — ou pelo menos era isso que o cocheiro havia dito uma dúzia de vezes. Passamos por uma gigantesca árvore que tinha nomes de amantes entalhados em sua casca, e então, um pouco mais adiante, havia um meio círculo de ruínas de mármore que pareciam dentes soltos e tortos na boca de um homem velho, e, por fim, ao longe, uma brilhante cisterna azul coroada por uma colina circundada por uma quadra de juníperos. Esses sinais indicavam que estávamos perto. A minha capa vermelha protegia-me contra o frio, ainda que o vestido de veludo cor de ocre, um ocre negro, mas que caía muito bem, fizesse seu trabalho. Em algum lugar, na frente ou atrás de mim, estava a carruagem com o duque sentenciado. Engoli em seco o nó na minha garganta e não disse nada além de “já vai tarde”. Voltamos pelo mesmo caminho em que viemos por mais alguns quilômetros estrada abaixo e depois viajamos novamente em direção ao sul. Enquanto pensava nisso, senti algo subitamente pulando de medo nas minhas entranhas, medo de que eu tivesse ouvido alguma outra coisa: o trovejar de cascos atrás de nós. Um semicírculo verde-azulado sacudido por barcos vermelhos e amarelos, alguns deles com ondulantes velas brancas, outros com grandes rodas de pás, revolvendo a água ao redor. Ainda havia outros que borrifavam uma trilha de espuma enquanto os remos mergulhavam em suas laterais. Desta distância, os barcos eram tão pequenos que pareciam brinquedos. Mas eu sabia que havia pessoas dentro deles, que os pescadores chamavam uns aos outros, jubilosos com o que haviam pescado no dia, com o vento carregando suas vozes, compartilhando suas vitórias, respirando suas histórias. Na enseada, para onde alguns deles se dirigiam, havia um longo cais com mais barcos e pessoas tão pequenas quanto formigas indo para todos os lados, ocupadas com suas funções. E então, talvez a coisa mais bela entre tudo isso, circundando a baía, havia casas e lojas que subiam pelas colinas, cada uma de uma cor diferente: azul-berrante, vermelho-cereja, laranja, lilás, como uma gigantesca tigela de frutas com a baía em seu cerne, e, por fim, dedos verde-escuros de floresta desciam das colinas para conterem aquela abundância em sua palma. A pedreira de Angór. Agora eu entendo porque sempre fora o sonho de Luce voltar ao lar de sua infância, de salvar seu reino ao me ajudar na usurpação. Passamos por uma praça pública sombreada por uma grande figueira. Crianças pulavam corda sob sua imensa copa que funcionava como uma sombrinha, e músicos tocavam flauta e sanfona, soprando melodias alegres para o pessoal da cidade que conversava em volta de pequenas mesas que ladeavam o perímetro. Mais adiante, mercadorias espalhavam-se das lojas até passadiços nas cercanias. Um arco-íris de cachecóis formavam vergalhões no ar impulsionados pela brisa do lado de fora de uma das lojas, e, em outra, engradados de berinjelas frescas e brilhantes, abóboras sem casca, erva-doce que mais parecia renda, assim como bojudos nabos cor-de-rosa estavam dispostos nas fileiras vibrantes e arrumadinhas. Até mesmo a loja de suprimentos para montaria era pintada em um tom de prata. Não se encontravam em lugar nenhum as cores sem vida. Ninguém olhou para nós. Mesclamo-nos aos outros que estavam de passagem. Tentei não sorrir, mas não consegui, enquanto olhava para a cidade que Luce descrevera tantas vezes para mim. Fomos em frente, embora eu não soubesse ao certo onde estava. Os soldados estavam rindo uns com os outros, os cavalos deles movendo-se em um ritmo preguiçoso. Uma carroça guiada por um outro soldado movia-se pesadamente atrás deles. Em momento algum eles olharam para nós, nem mesmo de relance. O cocheiro abriu a porta para mim,
- Majestade.
Diz um deles, fazendo uma reverência, sendo seguidos pelos outros.
- Boa tarde, oficial - murmuro - O prisioneiro já está pronto para ser libertado?
- Sua Majestade deu ordens expressas para tal ato.
Froy...
- Pois muito bem.
Os homens me seguem até o presídio. O ar aqui é estranho, rarefeito. Limpo demais, como se fosse isolado do resto do mundo. Eu o sinto nos contornos do ferro, da prata, do cromo. A sensação é avassaladora, mesmo depois das longas horas. Apesar da época do ano, o ar está mais frio que eu esperava, e meus pelos se arrepiam por baixo da leve seda que envolve meus ombros. É minha primeira visita oficial, tanto como monarca do reino quanto como rainha de Alhures. Estou muito além dos limites do mundo como o compreendo. Inspiro de novo, com a respiração estranhamente rasa. Até respirar aqui é diferente. Não é tarde o bastante para o sol se pôr, mas as montanhas são tão altas que a luz já diminui. Sombras compridas atravessam o campo de pouso, localizado nas profundezas do vale. Sinto como se pudesse tocar o céu. Passar minhas garras cheias de joias nele e fazer com que sangre o brilho das estrelas. Em vez disso, mantenho as mãos ao lado do corpo, com meus muitos anéis e braceletes escondidos entre as dobras da saia e minhas mangas. Pura decoração. Acessórios lindos, inúteis e silenciosos. Como meus pais querem que eu seja. Do outro lado da pista, há um precipício. As escarpas esculpidas das montanhas emolduram o horizonte como uma janela. Vejo a silhueta de um homem observando o horizonte, onde a tarde cai em tons nebulosos de roxo. A cordilheira lança sua própria sombra, e o mundo todo parece desaparecer na escuridão própria de Ilhures. O  exilado olha a paisagem, imóvel a não ser por sua capa escarlate, que tremula ao vento. Froy mandou Dylan para o inferno na Terra, e sequer tentou disfarçar seu contentamento.
Estremeço com a lembrança de seu rosto branco, de seus olhos azuis, de como cada parte dele parecia queimar em chamas. Não há nada em Froy além de voracidade. Quase grito de felicidade ao visualizar o homem se virar. Harry Wentworth. Seus olhos amendoados, estranhamente dourados, passam dos guardas para mim. São a única parte dele que parece viva. O resto — das expressões vazias e neutras aos dedos parados — parece treinado para se controlar.
Por cima do ombro dele, vejo os guardas da pedreira em seus uniformes assim como seus oficiais e soldados com sua insígnia. Há dezenas deles.
Rodo um anel no dedo, procurando me distrair com minhas joias para não rir. De canto de olho, vejo alguns botões brilhando. Metal pesado, bem forjado, em formato de chama. Ele se aproxima. Harry não me diz nada, e fico feliz com isso. Não nos falamos de verdade há meses. Não desde que escapou da morte. Meu guarda faz uma breve referência, ainda sorrindo.
- Majestade.
- Seu desgraçado.
O abraço e sinto que poderia morrer agora. Suas bochechas estão macias, seu cabelo preto está ajeitado e lustroso, penteado para trás. O beijo sem me importar com quem está ao redor, e mesmo com a higiene não atualizada, ele ainda é o meu Harry.
- Eu preciso me banhar. Sou um homem livre agora.
- Claro, eu espero.
- Na verdade... - disse ele, malicioso - Estava pensando se não gostaria de ir comigo.
                              +++
O lago era celestial. Era próxima à caverna, gozava de uma bela água azul, com uma intensa luz do crepúsculo, e de repente senti como se estivesse coberta por uma casca de sujeira, pó e suor, o cabelo preso em um emaranhado gordurento. Os olhos de Harry dançaram, e senti aquele impulso familiar dentro do peito, aquele mesmo puxão que senti desde a primeira vez em que o vira. Eu não sabia dizer o instante exato em que me apaixonei por ele, mas sempre existira alguma coisa nele que me fazia lembrar de um leão, de um animal selvagem que desconhece regras, a promessa de uma vida de liberdade. Nunca “não posso”, mas sempre “eu posso”. Sempre o risco e a certeza, nunca o medo ou a dúvida. Ele se levantou instantaneamente, pegando-me pela mão, guiando pelo corredor oeste que saía da caverna central. Seguimos em silêncio, a meia-luz iluminando o caminho, um silêncio que quase tive medo de romper, como se fosse quebrar a calma ilusória de um sonho ou feitiço. Harry soltou a minha mão e caminhou os últimos passos da trilha até a beira da água, onde a areia era fina e macia, brilhando com mica. Ele fez uma pausa a alguns metros da água e falou:
- Obrigado.
- Pelo quê?
- Eu nem consigo imaginar o que você fez para me fazer ser liberto, e eu jamais conseguirei...
- Eu fiz o que precisava ser feito - repito as palavras de Lucinda - Tudo que importa somos nós.
- E nossos corações. Que mesmos destroçados, ainda batem.
Ele deixou a frase solta, enervada pela ausência de resposta. Harry olhava para a água, azul e rasa, de costas para mim. Ele virou, e de repente estava nos braços dele. Aquilo provocou um choque por todo o meu corpo. As mãos de Harry me envolviam os ombros, os dedos acariciavam levemente o tecido do vestido. Estremeço, os pensamentos voaram da cabeça como penas espalhadas pelo vento.
- Quando você se tornou tão cautelosa, minha rainha?
- Não sou cautelosa - respondi, enquanto ele tocava a têmpora com os lábios. O hálito morno remexeu os cachos perto da orelha. - Só não sou você.
O sinto rir. As mãos dele deslizaram pelas laterais do meu corpo e então me agarraram pela cintura.
- Isso você definitivamente não é. Você é muito mais bonita.
- Você deve me amar mesmo - comento, a respiração falhando enquanto os lábios dele roçavam provocativamente por minha mandíbula.
Tentei não me surpreender quando a boca dele encontrou a minha, os lábios dele se abrindo para sentir o gosto dos meus. Levei os braços ao pescoço dele, entreabrindo a boca para ele, e mordendo gentilmente o lábio inferior do guarda. Fez mais efeito do que eu esperava; as mãos dele apertaram a minha cintura, e ele gemeu baixinho de encontro à boca. Um instante depois ele se afastou, vermelho, os olhos brilhando.
- Você está bem? - perguntou ele - Você quer isto?
Assenti, engolindo em seco. O corpo todo parecia vibrar como uma corda estimulada de um instrumento musical.
- Sim, eu quero. Eu...
- É que fiquei tanto tempo sem poder te tocar de verdade, e agora eu posso - falou ele - Mas talvez este não seja o lugar...
- É, isto é bem sujo - admiti.
- “Bem sujo” parece um pouco crítico para situação.
Levantei as mãos, as palmas para cima. Tinha sujeira na pele e embaixo da unha.
- Estou falando literalmente - explicou, e meneou o queixo em direção à água - Não íamos nos lavar? Na água?
O brilho dos olhos dele escureceu para uma tonalidade âmbar.
Ele tirou a camisa; o colarinho prendeu por um instante, e simplesmente fiquei olhando, de repente muito consciente do fato de que estávamos sozinhos, e do corpo dele: da pele morena mapeada por marcas novas e antigas, de uma cicatriz desbotando abaixo da curva do músculo do peitoral esquerdo. Ele tinha emagrecido.
- Vai ficar de roupa? - perguntou - Eu poderia prometer não olhar, mas estaria mentindo.
Reviro os olhos, rindo.
- Pervertido. Mas ganha pontos pela honestidade.
- Sou homem. Somos todos pervertidos - falou ele, tirando os sapatos e a calça.
Estava de cueca samba-canção preta e, para meu alívio e decepção, seguiu para a água sem tirar a peça, entrando até a altura do joelho. Tirar o vestido é mais fácil e rápido do que eu esperava. A água estava fresca, mas não fria, lambendo meus tornozelos. Harry olhou para mim e sorriu. De repente ele enrubesceu, desviou o olhar, recuando de modo que a água subiu e o cobriu até os ombros. Ele mergulhou e ressurgiu, menos ruborizado, porém muito mais molhado, os cabelos escurecidos e escorrendo filetes de água.
- É mais fácil se entrar de uma vez só - avisou ele.
Respirei fundo e mergulhei, a água cobrindo até a cabeça. E era linda – azul-escura, com fios de prata por causa da luz vinda do alto. O pó das rochas havia se misturado à água, lhe conferindo uma textura pesada e macia. Era fácil boiar. Um esguicho de gotículas de água me fez olhar para cima. Harry estava a alguns metros de distância, sacudindo o cabelo. Pensei em debochar de como a pedreira deixara seu cabelo hidratado, mas antes disso ele me pegou pelos quadris e puxou-me para si através da água. Era funda o suficiente para que ele ficasse de pé, mas ela não.  O segurei nos ombros para me manter ereta enquanto ele puxava as pernas  para sua cintura. Olho de cima para ele, com um calor no estômago, para as linhas molhadas do pescoço, dos ombros e do peito, as gotículas de água como estrelas nos cílios de Harry. Ele se esticou para cima para me beijar exatamente quando me inclino para baixo; os lábios se chocaram com uma força que enviou um choque de prazer e dor pelo corpo. As mãos de Harry deslizaram pela minha pele enquanto eu encaixava minha mão em sua nuca. Ele entreabriu os meus lábios e acariciou-me a boca com a língua. Ambos estavam trêmulos, e ele estava ofegante, a minha respiração se misturando à dele. Harry esticou uma das mãos para trás, tocando a parede da caverna em busca de firmeza, mas ela estava escorregadia por causa da água e ele deslizou um pouco. Interrompi o beijo enquanto ele recuperava o equilíbrio, sem soltar o braço esquerdo dele, pressionando os corpos um contra o outro. As pupilas dele dilataram, e o coração batia forte de encontro ao meu.
- Isto foi - arfou ele, e pressionou o rosto na junção do pescoço e do meu ombro, inspirando como se estivesse sorvendo - Isto foi... intenso.
- Ainda não consigo acreditar que posso te beijar, te tocar, tocar de verdade, sem medo...
Ele me deu um beijo no pescoço e me sobressaltei; ele recuou para olhar para mim. A água escorria pelo rosto de Harry como se fossem lágrimas, contornando as bordas proeminentes das maçãs, a curva da mandíbula.
- Te amei de maneira imprudente desde que te conheci. Nunca me importei com as consequências. Eu dizia a mim que me importava, dizia que você queria, então tentei, mas jamais consegui. Queria você mais do que queria ser bom. Queria você mais que qualquer outra coisa, que jamais quis.
Os músculos dele estavam rijos, o corpo tremendo de tensão. Me inclinei para tocar os lábios de Harry com os meus próprios, para apagar aquela tensão com um beijo, no entanto ele recuou, mordendo o lábio inferior com força suficiente para deixar a pele branca.
- Desculpe por isso, é que... Eu não quero ser bruto com você, não suportaria te machucar.
Quero rir, mas me controlo.
- Posso beijá-la?
Em vez de fazer que sim com a cabeça, me inclinei para ele, para os lábios se tocarem. Os braços de Harry me envolveram completamente, e de repente ele estava comigo nos braços, saindo do lago, a água escorrendo de ambos. Ele se ajoelhou na areia, colocando-me o mais gentilmente possível sobre a pilha de roupas amassadas. Ele tentou se ajeitar por um instante e então desistiu, deitando e puxando-me para si, beijando furiosamente até ele gemer e sussurrar:
- Cat, não consigo... você precisa me falar... não consigo pensar...
Passo as mãos nos cabelos dele, afastando-os apenas o bastante para conseguir olhar o rosto dele. Ele estava ruborizado, os olhos dilatados de desejo, o cabelo começando a cachear à medida que secava, caindo sobre os olhos.
- Tudo bem - sussurrei de volta - Tudo bem, não precisamos parar. Eu quero. Eu quero se você quiser.
- Se eu quiser? - Houve uma nota de ferocidade em seu riso baixinho - Não dá para notar?
E então ele estava me beijando novamente, sugando o lábio inferior, beijando-me no pescoço e na clavícula enquanto passava as mãos por todo o corpo, livre por saber que podia tocar-me o quanto quisesse, como quisesse. Pude aproveitar do mesmo direito. Sentia como se o estivesse desenhando, as mãos mapeando o corpo, a curvatura das costas, a barriga, os entalhes dos quadris, os músculos nos braços. Era como se, tal como uma pintura, ele estivesse ganhando vida sob minhas mãos. Quando as mãos dele deslizaram sob o meu peito, ofeguei com a sensação e, quando ele congelou, a dúvida no olhar, fiz que sim com a cabeça. Continue. Ele parava a todo instante; parou antes de cada toque, perguntando com olhares e palavras se deveria continuar, e em todas as vezes eu assentira. Podia sentir os músculos de Harry flexionando. A mão livre acariciava os meus cabelos, os cotovelos enterrados na areia, um de cada lado, aliviando o próprio peso de cima. Harry estava totalmente tenso e trêmulo, as pupilas dilatadas, as íris eram pequenos círculos dourados.
- Algum problema?
- Não, lindo - sussurrei, e o puxei para baixo novamente.
Cada beijo era diferente, cada um mais intenso que o outro, como faíscas numa fogueira crescente: beijos breves e suaves, que diziam que ele a amava; beijos longos e lentos, repletos de idolatria, que diziam que ele confiava nela; beijos leves e brincalhões, que diziam que ele ainda tinha esperança; beijos de adoração que diziam que ele tinha nela uma fé que não tinha em mais ninguém. As mãos de Harry estavam tremendo, mas percorriam o meu corpo rápida e habilidosamente, toques leves que me enlouqueceram até ele se contorcer, incentivando-o com o apelo silencioso dos dedos, lábios e mãos. E mesmo naquele último instante, quando vacilou, eu o estimulei a continuar, me enroscando nele, impedindo-o de se afastar. Eu mantinha os olhos bem abertos enquanto ele estremecia, o rosto no meu pescoço, repetindo meu nome sem parar. Então ele curvou sua cabeça novamente e a sensação de sua boca em meus seios me fez gritar.  Ele beijou meus ombros e meus seios, meu estômago, meus quadris; ele me beijou em todos os lugares enquanto arqueava e me movia contra ele em formas que o faziam gemer e a implorar que parasse ou isso estaria acabado cedo demais. Ele riu entre arfadas, disse a ele pra continuar, tentou me manter calma, mas isso era impossível. Ele estava dentro de mim, estava fora, mas nos completávamos de qualquer forma. E nada mais importa além de nossos corações ainda batendo.

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