Chapter VIII - The Witching Hour

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A raiva faz meu estômago se contorcer. Qualquer coisa menos isso.  Seus dedos se enterram na minha pele, as unhas ameaçando cortar minha carne. Lágrimas se acumulam em meus olhos enquanto ele se movimenta, tirando rapidamente seu peso do meu corpo. Quando termina, estou chorando. É como se eu pudesse flutuar. Mas a fraqueza ainda me debilita, tenho menos chances que na minha última tentativa de fuga. Tento reunir meu poder, tento sentir os elementos ao meu chamado. Mal capto a corrente passando por elas. Ele sai do quarto, usando seu roupão cobre de veludo satisfeito consigo mesmo. Uma chama fraca centelha em minha mão. Ela treme, revelando seu medo. Escuto um raio atravessar o céu, claro demais para olhar. Quando abro os olhos, a beleza natural se foi.
Recuperando o fôlego e com todas as minhas forças, me arrasto pelo chão. Tropeço quando chego em batentes e nos degraus. Chuto sem forças, tentando me segurar em qualquer coisa. Os sentinelas desviam dos meus pobres esforços. Um tem o disparate de olhar o meu corpo nu antes de fazer uma reverência. Tento gritar por ajuda, mas não consigo reunir ar suficiente para fazer barulho. E não vai adiantar nada. Alguma coisa mais alta do que os trovões corta o céu. Duas coisas. Três. Seis. É a nova frota de Froy, provavelmente. À distância, vejo uma explosão de pétalas de fogo vermelho e fumaça preta. Estão bombardeando a Praça?
Quando olho pela última vez, sombras escuras surgem, aproximando-se cada vez mais. Não consigo ver direito.
Luto o quanto posso, ou seja, resmungo e me contorço. Cada centímetro parece difícil de conquistar e inútil. Sigo em frente, enquanto os corredores do palácio se ramificam ao meu redor. Sei exatamente para onde estou indo. Em direção leste, a parte do palácio que fica mais próxima do meu quarto. E mesmo com certa dificuldade, consigo entrar nele. Um vestido preto está separado para mim, de certo que Luce o havia selecionado para o jantar. Meu corpo pinica quando tento vesti-lo, repudiando a seda e o que ela representa. Repudiando o fato de que sou rainha de Alhures, mas não correspondo a esse papel. Nunca poderei. A tiara de Amber pesa na minha cabeça, mas é um peso familiar. Meu rosto reflete a dor e a insanidade, mas não importa. Seguro o abre-cartas com firmeza e com certeza sangro por isso. Mas é a última vez que sangrarei. Froy de Lancaster morrerá esta noite.
                              +++
Luce.

Harry está atrasado, e meu coração bate forte, disparando. Luto contra a onda de medo, transformando-a em combustível. Não tenho tempo ou energia para desperdiçar. O corredor parece se estender à minha frente, ficando mais longo a cada segundo. Deste lado do palácio, mal consigo ouvir a batalha na Praça. Bruxas atacam soldados fortemente armados e o rei covarde não é capaz de lutar ao lado deles. As janelas dão para um pátio tranquilo, apenas com nuvens tempestuosas no céu. Se eu quisesse, poderia fingir que este é só mais um dia do meu tormento habitual. Todos sorrindo com suas presas, circundando um trono cada vez mais letal. Vamos ficar bem. Respiro fundo, me agarrando a essas três palavras. Elas não acalmam meus nervos. Quero me livrar deste lugar. Quero ir para casa. Quero ver Mirtes de novo. Quero que Harry surja pelo corredor a salvo e inteiro.
Mas ele mal pode andar.
- Harry! - grito, esquecendo todos os medos menos um quando ele aparece.
Seu sangue se destaca, em contraste com a armadura de metal preto, a prata espalhada pelo peito como tinta. Sinto o gosto do ferro, o cheiro penetrante do metal. Sem pensar, puxo sua armadura, trazendo-o com ela. Antes que caia, encosto meu peito no dele, servindo de apoio. Ele está quase fraco demais para ficar de pé, quanto mais correr. Um terror congelante atravessa minha espinha.
- Você está atrasado - sussurro, recebendo um sorriso dolorido em resposta.
Começo a tirar as placas da armadura. Com mais um movimento brusco das mãos, o metal cai de seu corpo com alguns ecos estridentes. Meus olhos voam até o peito de meu amigo, esperando ver um ferimento sério. Não há nada além de alguns cortes superficiais, nenhum deles grave o suficiente para abater alguém como ele.
- Eu estou bem - ele afirma - Aqueles desgraçados não são tão preparados quanto os guardas da pedreira de Angór.
Corro os olhos pelo braço de Harry, pela pele branca, agora cinza e preta com os ferimentos abertos.
- Aí estão vocês - disse uma bruxa - Sr. Wentworth, onde está a rainha?
- Freya? O que está fazendo aqui?
- Procuramos ela por toda parte. Ela não está no quarto, nem em nenhuma sala de estar.
Seus belos olhos, com o cinza das pedras, penetram nos meus, em advertência. Vejo temor ali, e não é para menos.
Ele não responde, só assente com a cabeça enquanto começa a tentar levantar. Obedeço, colocando seu braço bom sobre meus ombros. Ele é pesado, quase um peso morto.
- Você precisa comer menos sobremesa - resmungo - Vamos, venha comigo.
Ele faz o que pode, forçando um pé depois do outro. Muito mais lento do que eu gostaria.
- Muito bem - falo baixo, estendendo a mão na direção da armadura descartada.
- Eu posso andar… - ele protesta, sem forças. - Você precisa da sua concentração. Precisa achar Catherine.
- Então se concentre por nós dois - respondo - Os homens são inúteis quando estão feridos, não são?
Ele sorri, e tem sangue em seus dentes naturalmente brancos. Noto cada pedaço conforme avançamos, arquivando-os por instinto. Estamos atrasados, mas só alguns minutos. No meio do caos, horas vão se passar até alguém da corte de Froy perceber que Cat desapareceu e que ele está morto. Não duvido que outras Casas aproveitem a oportunidade, como ratos fugindo num naufrágio. A corte é um barril de pólvora com o pavio cada vez mais curto e um rei que cospe fogo. Só um idiota não esperaria uma explosão. Froy achou que poderia nos controlar, controlar Catherine Millstone. Que ela era uma ferramenta fácil de usar. Um rei distraído torna a rainha mais poderosa. Balanço a cabeça, me concentrando na missão atual. Os pátios dos fundos de Alhures se abrem em jardins floridos, que por sua vez são delimitados pelos muros do palácio. Algumas cercas de ferro forjado protegem as flores e os arbustos. Boas para lanças. A patrulha da muralha e dos jardins costumava ser composta de guardas, mas as coisas mudaram nos últimos meses. E, com a batalha ferrenha e o próprio rei em perigo, os outros guardas do palácio estão espalhados. Olho para cima através da folhagem, das flores de magnólia e das cerejeiras claras em contraste com o céu escuro. Figuras de preto rondam os baluartes de diamante. O suor escorre pelo meu pescoço conforme o muro se aproxima. Devido ao medo, devido ao esforço. Só mais alguns metros. Eu me preparo, engrossando as botas, endurecendo os últimos passos.
- Você consegue ficar de pé? - pergunto a Harry.
Com um gemido, ele se liberta dos meus braços, obrigando-se a ficar de pé.
- Não sou criança, Luce. Posso andar dez metros.
Para provar o que diz, o aço preto retorna ao seu corpo em escamas reluzentes. Se tivéssemos mais tempo, apontaria os pontos fracos de sua armadura, que costuma ser perfeita. Buracos nas laterais, costas finas. Mas só aceno com a cabeça.
Ele ergue o canto da boca, tentando sorrir, para diminuir minha preocupação. Um pedaço tão pequeno de metal é a diferença entre a vida de outra pessoa e a minha morte. Pode me matar ou me salvar. Eu prefiro que o salve. Preciso salvar Catherine.
                              +++
A escuridão me acompanha. Cada candelabro chia e pisca quando eu passo. O vidro estoura, cuspindo cacos. O ar vibra como um fio vivo. O fogo acaricia minhas mãos abertas e eu estremeço com a sensação de tanto poder. Achei que tinha esquecido como era. Mas é impossível. Posso esquecer quase qualquer outra coisa no mundo, não minha magia. Não quem e o que sou. Ando sem rumo. Em direção à fumaça, ao perigo, ao que pode finalmente ser minha salvação ou meu fim. Não me importa, desde que não fique nesta prisão infernal nem mais um segundo. Meu vestido se agita em trapos rubi, rasgado o suficiente para me permitir correr o mais rápido possível. As mangas ardem, queimando com cada nova explosão. Não me contenho agora. As pétalas de fogo vão para onde querem. Explodem a cada batimento cardíaco. Elas dançam pelos meus dedos, saindo e voltando para minhas mãos. Meu corpo estremece de prazer. Nunca senti nada tão maravilhoso. Fico olhando para o fogo, apaixonada por cada labareda. Faz tanto tempo. Tempo demais.
Deve ser assim que caçadores se sentem. A cada esquina que viro, espero encontrar algum tipo de presa. Sigo pela rota mais curta que conheço, atravessando a Sala do Trono, seus assentos vazios me assombrando enquanto corro. Se tivesse tempo, eu a destruiria. Partiria cada centímetro da coroa flamejante. Mas tenho uma coroa de verdade para atacar. Porque é isso que vou fazer. Se Froy ainda estiver aqui, se o infeliz não tiver fugido. Vou assistir ao seu último suspiro e saber que ele nunca mais vai poder me tocar. Alcanço aos agentes de segurança, que estão de costas para mim. Todos os três mantêm as espadas compridas sobre o ombro enquanto cobrem a passagem. O primeiro ouve meus passos. Ele vira a cabeça, olhando por cima do ombro. Meu fogo atinge sua coluna e sobe até seu cérebro. Sinto seus nervos por um segundo. Em seguida, a escuridão. Os outros dois reagem, virando para mim. A terra é mais rápida do que eles, sugando os dois. Não diminuo o ritmo, passando por cima do corpo fumegante. O próximo corredor dá para a Praça, e os vidros que antes brilhavam agora estão cobertos de cinzas. Alguns lustres estão destruídos no chão, em pilhas retorcidas de ouro e vidro. Há corpos também. Agentes de segurança, bruxas do Coven. O resultado de um breve combate, um dos muitos que compõem a batalha. Abaixo para sentir o pulso da bruxa mais perto de mim. Nada. Seus olhos estão fechados. Fico feliz por não reconhecê-la. Lá fora, outra explosão de raios azuis atravessa as nuvens. Não consigo não sorrir, embora os cantos da boca repuxem as cicatrizes.
O que antes era um local de descanso para monarcas, agora é uma guerra.  Há pelo menos cinco bruxas para cada soldado. Treinados com precisão militar, desde os equipamentos táticos até a movimentação. Começo a me perguntar como chegaram aqui, e então vejo as inúmeras carruagens e carroças escondidas.
- Um resgate e tanto - sussurro.
E vou garantir que seja bem-sucedido. A hora da bruxaria começou.
Mais de uma dúzia de agentes de segurança guardam a entrada. Um deles está ocupado protegendo as janelas com grades feitas dos lustres retorcidos e adornos de ouro das paredes. Corpos e sangue de ambas os adversários cobrem o chão. O cheiro de pólvora prevalece. Os agentes protegem o palácio, mantendo a posição. Sua atenção está voltada para a batalha lá fora, para a Praça, não para a retaguarda. Agachada, coloco as mãos sobre o mármore aos meus pés. O toque é frio sob meus dedos. Todo o piso em paralelepípedo desmorona. Alguns caem na cratera, outros são jogados para trás. Se é suficiente para matar, não sei. Só penso na Praça. Quando o ar da rua atinge meus pulmões, quase dou risada. Está envenenado com cinzas, mas cheio da eletricidade da tempestade de raios, e parece mais doce do que qualquer outra coisa. Lá em cima, as nuvens pretas trovejam. O som reverbera nos meus ossos. Não fico parada. Continuar na escadaria, olhando o tumulto, é um bom jeito de ser pega no fogo cruzado. Mergulho na batalha, procurando algum rosto familiar, se não amigável. Pessoas se esbarram ao meu redor. Os soldados foram pegos de surpresa, incapazes de se organizar nas formações treinadas. Só as bruxas demonstram algum tipo de organização, mas ela está se desfazendo rapidamente. Vou em direção ao terraço, o último lugar onde Froy e seus sentinelas podem estar. Vou matá-los. Tenho que matá-los. Flechas passam pela minha cabeça assoviando. Sou mais baixa do que a maioria, mas ainda assim me curvo ao correr. O primeiro soldado a me desafiar diretamente tem o demônio no corpo. Um homem fino com o cabelo ainda mais fino. Ele estende o braço e sou jogada para trás, batendo a cabeça no piso. Sorrio para ele, prestes a gargalhar. Um feiticeiro, um telecinético. Mas de repente não consigo respirar. Minhas costelas se contraem, me apertando. Ele vai esmagar minha caixa torácica.
Raios se levantam para encontrá-lo, brilhando em fúria. Ele desvia, mais rápido do que eu imaginava. Minha visão escurece quando a falta de oxigênio atinge meu cérebro. Está tão concentrado em mim que não percebe quem está vindo atrás dele. O feiticeiro tem o pescoço quebrado por ninguém menos que uma bruxa. E ela não está sozinha.
- A Freya é bastante forte - Luce sorri.
Respiro fundo e tremo aliviada.
Meus pés me carregam para longe antes que eu possa agradecer, ouvindo seus passos apressados atrás de mim. A multidão se movimenta, uma maré mudando rápido. Se não fossem as bruxas misturadas, eu conseguiria atravessá-la. Abriria caminho com um incêndio. Em vez disso, uso meus antigos instintos. Passos ágeis, prevendo cada onda de caos. Lanço raios na retaguarda, afastando quaisquer mãos. Continuo em frente, empurrando, correndo. Minha cabeça grita um nome. Froy. Froy. Froy. Se conseguir chegar até ele, estarei a salvo. Talvez seja mentira, mas é uma mentira boa. O cheiro de fumaça fica mais forte conforme avanço. A esperança aumenta. Onde há fumaça... Cinzas e fuligem mancham as paredes brancas da Casa do Tesouro. A pedra está em uma pilha de destroços na entrada, fornecendo boa cobertura. Os sentinelas a usam, sua formação reforçada por guardas. Eles atiram nos rebeldes que se aproximam, usando flechas para defender a fuga do rei. Muitos feiticeiros usam seus poderes. Desvio de alguns corpos congelados ainda de pé, obra violenta de um deles. Há sobreviventes, mas de joelhos, sangrando pelas orelhas. As evidências do poder mortal dos feiticeiros estão por toda parte. Corpos partidos por metal, pescoços quebrados, crânios amassados, bocas pingando água. Vejo o cadáver especialmente sombrio de alguém que parece ter sido sufocado pelas plantas nascendo em sua boca. Diante dos meus olhos, elas explodem como granadas, cuspindo videiras e espinhos em uma explosão verdejante. Não vejo o vejo aqui, ou qualquer outro rosto que reconheça. Froy já deve estar longe. Cerrando o punho, jogo tudo o que posso sobre os sentinelas. Meu fogo crepita ao longo dos escombros e os jogam para trás. Vagamente, ouço alguém gritar ordens para que continuem. As bruxas fazem isso, lutando sem parar.  Ninguém ousa entrar no nosso caminho. Xingo, desejando principalmente que Harry estivesse aqui.
Sou espectadora na minha própria cabeça. Uma batalha furiosa surge diante dos meus olhos e não posso fazer nada a não ser acompanhar. Dor e medo nublam seus olhos.
Mate-o. Mate-o. Mate-o. Eu preciso matar Froy. Não posso mais sentir medo.
O fogo me joga para trás. Caio com tudo, os ombros e a cabeça quicando no chão. O mundo gira, e meus membros desengonçados tentam me botar de pé. A dor me perpassa como uma onda e caio para trás no mesmo instante que um feiticeiro passa por mim. Ele é um telepata, como Ruby. Está me fazendo reviver o momento com Froy, e repetidas vezes. Por instinto, lutando contra o zumbido no meu crânio ferido, levanto com dificuldade. Me mexo por vontade própria. O fogo desce pela garganta do telepata, carbonizando suas entranhas. Suas cordas vocais estão destruídas. O único grito que ouço agora está na minha cabeça. Levo o raio para seu cérebro. A eletricidade frita o tecido em seu crânio como um ovo na frigideira. Seus olhos se reviram, brancos. Quero que a dor dure mais, quero fazê-lo pagar pelas torturas contra mim e tantos outros. Mas ele morre muito rápido. A batalha para, todos estão evacuando.
- Acabou - digo, aliviada.
- Acabou - Harry repete.
Sonhei tanto com este momento, desejando-o há meses. Se não fosse a batalha, nossa posição precária bem no meio dela, lançaria meus braços em volta do seu pescoço e me enterraria em seu abraço. Em vez disso, ajudo-o a levantar colocando um de seus braços sobre meus ombros. Ele manca, com espasmos na perna. Estou ferida também, com um corte sangrando na lateral do corpo. Pressiono a mão livre na ferida. A dor fica mais forte.
- Froy está sob o Tesouro. Ele tem um comboio particular - digo enquanto nos afastamos juntos.
Seu braço aperta meus ombros. Ele nos leva em direção ao portão principal, apertando o passo.
- Não vim aqui por ele.
O portão se destaca, largo o suficiente para que três veículos passem lado a lado. Do outro lado, a ponte se estende sobre o rio Capital encontra o lado leste da cidade. A fumaça sobe por toda parte, alcançando o céu tempestuoso. Luto contra o ímpeto de virar e correr até o Tesouro. Mas Froy já deve ter fugido. Está fora do meu alcance. Mais veículos avançam.É muito reforço.
- Qual é o plano, então? - sussurro. Estamos sendo cercados. O pensamento esgota o choque e a adrenalina, me deixando alerta. Tudo isso por mim. Corpos por toda parte. Que desperdício.
A mão de Harry encontra meu rosto, me fazendo virar para olhar para ele. Apesar da destruição à nossa volta, ele sorri.
- Pela primeira vez, temos um. Você.
Enxergo verde no canto do olho. Sinto outra mão agarrar meu braço.
E o mundo vira nada.

Alhures (#2)Onde histórias criam vida. Descubra agora