Chapter XII - Could It Be... Satan?

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Não era mais apenas um pesadelo, e a fila de preto avançava para nós em meio à névoa gelada que seus pés levantavam. Vamos morrer, pensei, em pânico. Eu estava desesperada por causa da preciosidade que protegia, mas pensar nisso já era um lapso de atenção a que eu não tinha direito. Eles se aproximavam como fantasmas, os mantos escuros ondulando levemente com o movimento. Vi suas mãos crisparem-se em garras cor de osso. Eles se separaram, aproximando-se de nós por todos os lados. Éramos em menor número. Estava acabado. E, então, como a explosão de luz de um flash, a cena toda ficou diferente. Apesar de nada ter mudado, a Inquisição ainda nos encurralava, prontos para matar. Só o que realmente se modificou foi minha percepção do quadro. De repente, eu ansiava por aquilo. Eu queria que eles atacassem. O pânico se transformou em desejo de sangue enquanto eu me agachava, com um sorriso no rosto, e um rosnado atravessava meus dentes expostos.
                             ***
Não consigo ver o castelo de Arcádia através da camada de nuvens baixas. Fico olhando para lá mesmo assim, os olhos grudados no horizonte que se estende atrás de nós, a leste. A cidade está destruída. Tivemos que contorná-la, passando longe do local hostil. Os soldados estão fazendo de tudo para não chamar atenção para ela, mas nem eles conseguem esconder uma derrota tão impressionante. Me pergunto como as novidades serão recebidas no resto do reino. É claro que haverá repercussões. Apesar de os vidros do veículo serem bem vedados, sinto cheiro de fumaça. Cinzas. Pólvora. O gosto metálico de sangue. Espero que meus pesadelos dêem uma trégua após isso. Lá fora, a floresta que acompanha os últimos quilômetros da Estrada de Ferro se afunila até virar nada. Troncos nus dão lugar a uma terra dura que mal merece a neve. A divisa entre Arcádia e Alfambres é um lugar feio. Terra cinza e céu cinza se misturam tão perfeitamente que não sei onde um termina e o outro começa. Quase espero ouvir explosões à distância. Meu pai dizia que sempre dava para ouvir as bombas, mesmo a quilômetros. Acho que não é mais o caso, não se Adalberto tiver sucesso. Vai terminar uma guerra pela qual pessoas morreram. Só para continuar a matança sob outro nome. O comboio avança em direção à base operacional que se estende à distância, um conjunto de prédios. Galpões, principalmente. Caixões para os vivos. Não, digo a mim mesma. Não pense nisso. É claro que penso mesmo assim. É impossível evitar os horrores em que não queremos pensar. Massacre. Para ambos os lados. Esfrego os olhos, tentando conter as lágrimas. O esforço me deixa exausta, mas me recuso a chorar. Panelas e frigideiras fazem barulho em algum lugar. Sigo o cheiro do bacon fritando. À luz do dia, os sons da casa parecem amigáveis e não combinam com uma base militar. As paredes cor de manteiga e os tapetes de um roxo floral aquecem o corredor central, mas a falta de decoração é um tanto suspeita. Há buracos de pregos no papel de parede. Talvez uma dezena de pinturas tenha sido retirada. Os cômodos por onde passamos — uma sala de visitas e um escritório — também sofrem de escassez de mobília. Ou o oficial que vivia aqui esvaziou a casa ou outra pessoa fez isso por ele. Pare, digo a mim mesma. Mereço o direito de não pensar em traições e deslealdades por um maldito dia. Você está segura; terminou. Repito as palavras na minha cabeça. Harry estende o braço, me parando na porta da cozinha. Ele se inclina para a frente na minha direção de um jeito que me impede de ignorar seus olhos. Castanhos brilhantes como lembrava. Ele estreita os olhos, preocupado.
- Você está bem?
Normalmente, eu acenaria com a cabeça e sorriria diante da insinuação. Já fiz isso muitas vezes. Afastei as pessoas mais próximas de mim, achando que podia sangrar sozinha. Nunca mais. Aquilo me tornava uma pessoa odiosa, uma pessoa horrível. Mas as palavras que quero pôr para fora não saem. Não para Harry. Ele não entenderia.
- Acho que preciso de uma palavra que signifique sim não ao mesmo tempo - sussurro olhando para os pés.
Ele coloca a mão no meu ombro. Por pouco tempo. Sabe os limites que tracei.
- Estarei aqui quando precisar conversar. Não se, mas quando. Não vou sair do seu pé até lá.
Abro um sorriso inseguro.
- Ótimo.
O barulho da gordura fritando estala no ar.
Ruby está sentada à mesa da cozinha, observando de canto do olho. Fazendo seu melhor para permanecer respeitável. Ela tamborila os dedos na mesa de madeira.
- Tem mais gente para comer - resmungo enquanto passo por Luce. Rapidamente, arranco um bacon dos dedos dela. Sorrio para minha amiga, que agora está prendendo o cabelo em um coque perfeito.
- Você teve outro pesadelo? - indaga Ruby, baixo.
Contra minha vontade, sinto as sobrancelhas se erguerem em surpresa.
- Não fique entrando na minha mente, por favor - resmungo - Além disso, não é nada. Ainda não me recuperei...
De Froy. Soa ridículo até em pensamento.
- Os pesadelos para bruxas têm apenas duas finalidades: ou lembrar, ou alertar.
- A Inquisição está atrás de nós pela morte da rainha de Alfambres, mas o meu sonho não se resume a isso.
- Eles estão atrás do seu bebê.
Assinto, fechando os olhos.
- Meu bebê, Ruby. Poderia ser... Satanás?
- Eu não acredito em mitos, Cat. Não acredito neles há muito tempo - disse ela - Mas podemos sanar suas dúvidas com pesquisa e com...
- O quê?
- Sua mãe. Abigail é quase uma anciã, se alguém pode esclarecer o mito, essa pessoa é ela.
- Absolutamente não. Não vou colocar a vida do meu bebê nas mãos daquela mulher.
Ruby não fala mais nada, e após o café da manhã, vamos todos para nossos aposentos. Não consigo ficar no quarto, porque os pássaros sempre me acordaram cedo. É bom que façam isso. Mais tarde fica quente demais para correr. A base funciona como uma boa pista e é bem protegida, com seus limites guardados por bruxas  locais. Uso um vestido de plebéia que é característico da vida de Catherine Millstone. A névoa baixa serpenteia pela rua lá fora entre as fachadas de tijolos. Destranco a porta da frente, sorrio quando o ar frio toca minha pele. Sinto cheiro de chuva e trovões.
Como esperado, Harry está sentado no último degrau, com as pernas esticadas na calçada estreita. Meu coração ainda dispara ao vê-lo. Ele boceja alto para me receber, quase deslocando o queixo.
- Vamos lá - esbravejo. - Soldados estão acostumados a estar de pé bem mais cedo que isso.
- O que não quer dizer que eu não prefira dormir quando posso.
Harry levanta com uma má vontade exagerada, só faltando mostrar a língua.
- Sinta-se à vontade para voltar para aquele quartinho improvisado onde você insiste em ficar no quartel. Aliás, você teria um pouco mais de tempo para dormir se mudasse para a rua dos oficiais - dou de ombros com um sorriso maroto.
Ele também sorri, então me puxa pela barra.
- Não insulte meu quartinho - ele resmunga, antes de me beijar nos lábios. Depois no queixo. Depois no pescoço. Cada toque faz explodir uma onda de fogo por baixo da minha pele.
Relutante, empurro seu rosto para longe.
- Certo, certo.
Ele se recupera rápido, empalidecendo. Meu corpo ainda está sensível ao toque. Mesmo ao toque dele.
Fazemos os exercícios, Harru com mais dedicação do que eu. Ele zomba de mim de brincadeira, achando algo errado em cada movimento.
- Não jogue tanto o braço. Não fique balançando para a frente e para trás. Calma, devagar.
Mas estou ansiosa, sedenta pela corrida. Eventualmente ele cede. Com um aceno de cabeça, Harry nos deixa começar.
A princípio o ritmo é calmo. Meus passos são quase de dança, animada com o movimento. A sensação é de liberdade. Minha respiração fica firme e ritmada, e as batidas do meu coração aceleram. Harry mantém um ritmo bom, me impedindo de disparar até os pulmões explodirem. O primeiro quilômetro e meio vai bem, nos levando até a parede perimetral. Metade feita de pedra, metade de cerca metálica com o topo coberto de arame farpado. Os próximos três quilômetros são mais difíceis. Uma grávida não deveria estar fazendo. Está mais quente hoje, e nuvens se formam sobre nós. Conforme a neblina desaparece, suo mais e meus lábios ficam salgados. Com as pernas pulsando, limpo o rosto com a manga. Harry também sente o calor. Ao meu lado, ele simplesmente tira a camisa e a prende na cintura. Meu primeiro instinto é alertá-lo contra o sol. O segundo é parar e observar o quanto os músculos do seu abdômen são definidos. Volto a focar no caminho à frente, forçando mais um quilômetro e meio. Depois outro. Outro. A respiração dele ao meu lado de repente me desconcentra. Circundamos a pequena floresta que separa o quartel e a rua dos oficiais do campo de pouso, quando um trovão ruge em algum lugar. A alguns quilômetros dali, com certeza. Harry estende o braço na minha frente ao ouvir o barulho, me fazendo parar. Ele vira para me encarar, as duas mãos agarrando meus ombros conforme se curva para ficar da minha altura. Seus olhos cor de bronze perfuram os meus, procurando alguma coisa. O trovão soa de novo, mais próximo.
- Qual é o problema? - Harry pergunta, cheio de preocupação. Uma mão se perde no meu pescoço para aliviar as cicatrizes das queimaduras, vermelhas e quentes com o esforço. - Fique calma.
- Não sou eu.
Inclino a cabeça na direção das nuvens negras de chuva com um sorriso.
- É apenas o tempo. Às vezes, quando fica muito quente e muito úmido, tempestades podem…
Ele ri.
- Certo, entendi. Obrigado.
- Você estragou uma corrida perfeita.  Estalo a língua fingindo frustração e seguro a mão dele. Seu sorriso malicioso é tão largo que enruga seus olhos. Conforme a tempestade se aproxima, sinto o coração elétrico pulsando. Meus batimentos se estabilizam para acompanhar seu ritmo, mas afasto o ronronar sedutor dos raios. Não posso me deixar levar com uma tempestade tão próxima.
Não tenho controle sobre a chuva, que cai como uma cortina, fazendo nós dois soltarmos um grito. As partes da minha roupa que não estavam cobertas de suor logo ficam ensopadas. O frio repentino é um choque para ambos, em especial para mim. Sem pensar, eu o abraço, tremendo.
- Deveríamos voltar - ele resmunga sobre minha cabeça.
Sinto a voz de Harry reverberando no peito dele, minha mão espalmada sobre o coração acelerado. Os batimentos disparam sob meu toque, em contraste com sua expressão calma. Algo me impede de concordar. Sinto outro puxão, bem fundo. Em algum lugar que não posso definir.
- Deveríamos? - sussurro, esperando que a chuva engula minha voz.
Os braços dele me apertam mais. Harry ouviu perfeitamente.
As árvores são novas, as folhas e galhos não se espalham o suficiente para oferecer cobertura completa da chuva. Mas nos esconde da rua. Meu vestido se vai primeiro, aterrissando na lama. Jogo a camisa dele na sujeira também, para ficarmos quites. A chuva cai em gotas gordas, cada uma delas uma surpresa gelada ao escorrer pelo meu nariz, minha coluna ou meus braços em volta do seu pescoço. Mãos quentes batalham pelas minhas costas, num contraste delicioso com a água. Seus dedos andam pela minha coluna, pressionando cada vértebra. Faço o mesmo, contando suas costelas. Ele estremece conforme minhas unhas arranham a lateral do seu torso. Harry retribui com os dentes. Eles roçam a linha do meu queixo até acharem minha orelha. Fecho os olhos por um segundo, incapaz de fazer qualquer coisa além de sentir. O trovão se aproxima. Como se fosse atraído por nós. Passo os dedos pelo cabelo dele, usando-o para puxá-lo para perto de mim. Mais perto. Mais perto. Mais perto. Ele tem gosto de sal e fumaça. Mais perto. Parece que não consigo chegar perto o suficiente.
Eu deveria estar com medo, mas só o frio me faz tremer.
Harry inclina a cabeça para trás e eu quase solto um gemido em protesto.
- Não precisa fazer isso, Cat. Eu entendo você está machuca e sensível...- ele sussurra, desviando o olhar. Dos seus cílios longos pingam gotas de chuva. Seu queixo se tensiona, como se estivesse envergonhado.
É típico de Harry sentir vergonha de algo assim. Ele gosta de saber o final do caminho, a resposta para a questão antes de ser perguntada. Quase dou risada.Esse é um tipo de batalha diferente. Não há treino para ela. E, em vez de vestir uma armadura, jogamos o resto das nossas roupas longe. Com lampejos sobre minha cabeça e raios em meus olhos. Cada nervo faísca vivo. O peito dele irradia sob minhas mãos, com um calor selvagem. Sua pele parece ainda mais pálida ao lado da minha. Usando os dentes, ele solta os braceletes e os joga no mato.
- Agradeço a Deus pela chuva - ele murmura.
Sinto o oposto. Quero queimar.
                              +++
Os livros dizem mais do mesmo. A criança vodu é só mais um anúncio do apocalipse, uma profecia. Mas Ruby tinha razão. Eles não me diriam nada de concreto, mas Abigail sim.  Precisava da minha mãe. Agora mais do que nunca.
- Wentworth - Greer entra na sala, interrompendo o silêncio que eu, Harry e Ruby havíamos construído - Tem um homem atrás de você. Não sabemos como ele te achou.
Harry franze a testa, mas levanta. Os minutos se transformam em uma hora completa, e começo a ficar apavorada. Saio à procura dele, não o acho a princípio. Raspo os braceletes um no outro, furiosa, deixando os pulsos cuspirem faíscas. Nenhuma delas incendeia ou explode em chamas. Cada uma é fria e fraca. Inútil. Fútil. Sigo-o pelas escadas espiraladas até uma varanda. Não sei se a vista é boa ou não. Não consigo enxergar muito além de Harry. Tudo dentro de mim treme. Medo e esperança batalham na mesma proporção. Vejo isso nele também, reluzindo atrás dos seus olhos. Uma tempestade se forma no bronze enfurecido, dois tipos de fogo.
O homem ainda grita.
- Você prometeu - disse ele, tentando atingi-lo sem mover um músculo - Quando Celeste estava ainda na Torre de Zéria, você prometeu a ela que assumiria a coroa caso algo acontecesse.
Harry anda pra lá e pra cá, descontrolado, até apoiar as costas no parapeito da varanda. Sua boca abre e fecha, procurando o que dizer. Uma explicação. 
- Não imaginava que… Quem poderia me querer como rei depois do que fiz? Me diga se você realmente imaginava que alguém me deixaria chegar perto do trono - Harry diz - Além disso, não sou um Pottier. A linhagem de Ilhures acabou. Morreu com Celeste. 
Ele enterra o rosto nas mãos flamejantes, esfregando-o como se quisesse se virar do avesso.
- Ilhures precisa de um líder antes que um tirano a assuma. Os homens o seguirão, Harry. Confiam em você. Confiam em seu amor por Celeste.
Aquilo machuca. Lágrimas queimam salgadas, rolando pelas minhas bochechas. Eu me odeio por chorar. Acabei de ver sei lá quantas pessoas morrerem e matei muitas delas pessoalmente. Como posso derramar lágrimas agora? Por causa de uma pessoa que respira diante dos meus olhos?
Minha voz sai estranha.
- É agora que eu peço para você me escolher?
Harry fica chocado ao me ver.
Porque é uma escolha. Ele só precisa dizer não. Ou sim. Uma palavra define nosso destino. Tremendo, pego seu rosto nas mãos e o viro para olhar para mim. Quando não consegue, quando seus olhos de bronze focam meus lábios, meus ombros, a cicatriz exposta ao calor do ar, algo se parte dentro de mim.
Seus olhos escurecem.
- Podemos criar nosso bebê em uma corte. Podemos criar uma nova dinastia.
- Esse não é o nosso mundo, Harry.
Pensei que Harry estivesse imune à tentação do poder. Ah, como eu estava errada.
- Não vou abandonar minha causa por uma coroa. Agora você precisa escolher. Eu ou Celeste.
- Cat, eu fiz uma promessa...
Dou um tapa no rosto dele. Sua cabeça se move com o impulso do golpe e para nessa posição, encarando o horizonte que me recuso a ver.
Minha voz racha.
Escolha uma coroa. Escolha a prisão de outro rei. Escolha trair tudo pelo que você sangrou.
Encontro minha amarra também. Fina, mas indestrutível.
- Eu te amo e quero você mais do que qualquer coisa no mundo.
As palavras dele soam vazias vindas de mim.
- Mais do que qualquer coisa no mundo.
Aos poucos, minhas pálpebras se agitam. Ele encontra coragem para olhar nos meus olhos.
- Pense no que podemos fazer juntos - Harry murmura, tentando me puxar mais para perto. Meus pés fincam no chão - Você sabe o que significa para mim. Sem você, não tenho ninguém. Estou sozinho. Não me resta nada. Não me deixe.
Minha respiração fica irregular.
Eu o beijo pelo que poderia ser, pelo que deve ser, pelo que será… pela última vez. Seus lábios passam uma estranha sensação gelada, como se nós dois tivéssemos nos transformado em gelo.
- Você não está sozinho.
A esperança em seus olhos é dilacerante.
- Tem sua coroa.
Achava que sabia o que era ter o coração partido. Pensava que era o que Froy tinha feito comigo. Quando me disse que tudo o que sempre pensei sobre ele era mentira. Na época, eu acreditava que o amava.
Agora entendo que não sabia o que era amor. Nem como um coração realmente partido pode doer. Não sabia como era ficar diante de quem mais importa e ouvir que você não é o suficiente. Não ser escolhida. Ser uma sombra para quem é seu sol. Sinto uma necessidade ardente de correr.

Alhures (#2)Onde histórias criam vida. Descubra agora