Chapter IV - Judas Kiss

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É quase cômico. Cada passo que dou explode na minha cara. Tentei salvar minha irmã e ela acabou morta. Tentei organizar um levante e ele já estava em curso. Acreditei nas palavras de Froy e em seu falso coração. Me sacrifiquei para salvar quem amo e dei ao rei uma arma. E agora, por mais que tente combater seu reinado de dentro, acho que só pioro tudo. Mesmo não dando minha resposta definitiva para Dylan, não vejo como recusar. Duas semanas de espera e o duque ainda não me pressionara. Ele sabia. Eu sabia. Derrubar meu marido ainda é minha única chance de salvação. Subo os degraus em direção à Sala do Trono o mais rápido que posso, erguendo a gola vermelha do meu vestido para me proteger do frio da tarde. Lá dentro, espero calor e uma plateia à espera, que vai se agarrar a cada palavra calculada de Froy. Em vez disso, encontro o caos. Este lugar um dia foi uma grande sala de reuniões; nas paredes há fileiras de bancos acolchoados, que agora foram tirados do caminho. Conto meia dúzia à primeira olhada. Seus uniformes revelam várias patentes, com insígnias das Grandes Casas. O Conselho da Dália.
- Estávamos à vossa espera, Majestade - disse o rei de Laios.
A monarquia da Dália estava destroçada, desigual. Alfambres, Laios e Arcádia eram os únicos a permanecerem com a linhagem natural ao trono. Todo o resto fora corrompido. Até mesmo Mirtes, a rainha interina de Arcádia, não conseguia aceitar o peso da coroa eminente. A princesa não olhava para mim, provavelmente para não desabar. Éramos as únicas mulheres no recinto, se nos deixássemos levar pela emoção do momento, jamais nos levariam a sério.
- Perdoem meu atraso, Majestades - disse - O que perdi?
- Muita pouca coisa, querida - sorriu Froy - Estava comunicando aos meus amigos monarcas que nosso casamento é o mais feliz de toda história.
Sorri.
- Não poderia ter descrito de maneira mais verdadeira, querido. Mas imagino que não seja esse o motivo desta reunião, não é mesmo? - corto o barato dele, enrolando uma mecha do meu cabelo no dedo.
- De fato - prosseguiu Mirtes - Como todos sabem, meu pai, o rei Otto, foi considerado incapaz de reinar. Por conseguinte, como sua herdeira natural, é minha obrigação assumir a coroa de Arcádia e para isso conto com o apoio de Vossas Majestades.
- Você já é a rainha para nós, minha querida - disse Adalberto - Entretanto, se julga capaz de fazer isso sem um apoio masculino ao seu lado?
- Vossa Majestade se refere a um marido? - indagou a princesa.
- É natural que sigamos essa linha de pensamento, querida - afirmou o rei de Laios - Uma vez que é necessário que a linhagem dos Sverre seja garantida para os dias que virão.
Sinto a dor das palavras perfurarem a minha amiga.
- Não considero o matrimônio, por ora. Como rainha, e ainda mais nessas circunstâncias, preciso ter minha cabeça fixa no meu reinado.
- Como a única monarca oficial desse Conselho, entendo a posição da princesa - balbuciei - Fui criada e preparada para ser rainha de Ilhures antes mesmo de cogitar o matrimônio com Froy. É normal que Sua Alteza queira um tempo em que possa ser individual em todos os sentidos.
- Obrigada, Majestade - ela sorri, e eu a acompanho.
- Bom, acho que não resta mais nada a dizer. No início de abril, Mirtes será coroada rainha de Arcádia - Froy sibilou, se retirando da sala logo em seguida.
Segurei a mão da princesa por breves minutos. Não dissemos nada e nem precisávamos. Mas, uma hora, eu precisei quebrar o silêncio.
- Ela está no meu quarto.
Mirtes sorriu e, juntamente com os outros monarcas, saiu e me deixou sozinha.
                             +++
O palácio é grande demais, mas ainda assim parece muito pequeno para mim e o duque. Tento fugir de sua presença o máximo que posso, talvez por medo. Talvez por certeza. Mas quando o encontro vindo na minha direção, decido não recuar. Dylan está usando seu cabelo preso num coque, o que realça sua pele e seu sorriso.
- É muito peculiar o rei mantê-la assim. Solta, eu digo. Mas os meninos são mesmo estranhos com seus brinquedos. Principalmente os que costumam perder as coisas. Eles as seguram com mais afinco.
- É o que você faria comigo? - pergunto. Como rei, Dylan teria vidas nas mãos. Pode acabar com elas, ou pior - Se estivesse no lugar dele?
Ele se esquiva da pergunta com destreza.
- Jamais cometerei o erro de tentar me colocar na cabeça dele. Não é um lugar onde qualquer pessoa sensata deveria estar - ele ri para si mesmo - O que me leva a minha próxima pergunta: como você conseguiu se apaixonar por uma miragem?
Não sou idiota de responder. E ele sorri diante do meu silêncio.
- Acha que não sou uma mulher capaz de amar?
Ele que permanece em silêncio dessa vez.
- Você não me conhece o suficiente.
- Tem razão, não conheço. Mas palavras não são suficientes para derrubar um rei.
- Quantos reis foram traídos justamente com palavras? - sorri - O duque deve estar esquecendo que Froy é um jogador muito melhor que você possa vir a ser. O desgraçado sabe que você não é confiável. O perigo pode vir de onde menos se espera.
- O Conselho da Dália estar aqui é uma oportunidade perfeita. Se pudéssemos provar que Froy não é herdeiro legítimo do trono de Alhures...
- Talvez não tenha como conseguir evidências, mas talvez possamos fazê-lo confessar - sorri, mirabolante.
- Ele jamais confessaria de forma voluntária que não é um Lancaster - disse Dylan - Ele perderia tudo. Nem mesmo o título de príncipe de Lótus seria válido.
A insinuação fica no ar como fumaça.
Ele se afasta, balançando a cabeça de um lado para o outro. Não gosta de alguma coisa que vê. Seus lábios se contraem em uma linha fina.
- Preciso do seu apoio, Majestade.
- E você o terá quando se mostrar merecedor.
Devagar, ela tira o terno e o dobra sobre o braço. A camisa embaixo é branca, fechada até a garganta, mas com as costas abertas. Dylan vira, com a desculpa de analisar a Sala do Trono. Na verdade, está se mostrando. Suas costas são musculosas, poderosas, esculpidas em linhas longas. Tatuagens pretas o cobrem desde a nuca, descendo pelo pescoço e passando pelos ombros até a base da coluna. Raízes, penso de início. Mas erro. São espirais de água, ondulando e se derramando sobre sua pele em linhas perfeitas. Elas se mexem com o duque, como uma coisa viva. Finalmente ele vira e olha para mim. O sorriso mais discreto está em seus lábios. Ele desaparece assim que ela vê além de mim. Não preciso virar para saber quem está se aproximando, quem lidera os muitos passos que ecoam no mármore e dentro do meu crânio.
- Eu teria prazer em mostrar o lugar para você, irmão - Froy diz.
Os guardas dão um passo para trás, abrindo espaço para o rei e seus sentinelas. As silhuetas e cores estão tão arraigadas em mim que os reconheço de canto de olho. Nenhum tanto quanto o jovem rei pálido. Sinto sua presença tanto quanto o vejo, seu calor saturante ameaçando me engolir. Ele para a alguns centímetros de mim, perto o suficiente para me pegar pela mão se quiser. Estremeço ao pensar nisso.
- Eu adoraria -  Dylan responde, inclinando a cabeça de um jeito estranho. A reverência não é fácil para ele. - Estava apenas falando com a rainha sobre a…
Dylan procura a palavra certa, olhando para o trono imponente dentro da Sala.
- Decoração.
Froy dá um sorriso curto.
Uma corrente de calor pulsa no ar. Como Dylan, também sinto a necessidade de tirar minhas vestes, mas não o faço com receio de que o temperamento de Froy me faça suar.
- Como papai morreu, meu rei?
Aconteceu aqui neste palácio. A alguns corredores e cômodos daqui, subindo as escadas que dão para um lugar sem janelas e com paredes à prova de som. Pensava que Froy morreria antes subir ao trono. Em vez disso, foi Tiberias que acabou morrendo. Então ele assumiu a coroa. Cerro os punhos ao lembrar. Meu ódio impede que eu escute a réplica, mas não a tréplica.
- Que horror - o duque murmura. Sinto seus olhos em mim.
- Sim. Não foi, querida?
O toque repentino de sua mão em meu braço queima como fogo. Quase perco o controle, e olho para ele de soslaio.
- Sim - me obrigo a responder entredentes - Um horror.
Froy concorda com a cabeça, cerrando a mandíbula para que o rosto se contraia. Não acredito que ele tem a ousadia de parecer taciturno. Triste, até. Não está nem um nem outro. Não pode estar. Uma praga se alimenta do cérebro de Froy e de cada pedacinho dele que poderia ser humano. Ele sabe disso. Sabe que alguma coisa está errada, algo que não pode consertar com nenhuma habilidade ou poder. Ele está partido, e não há curandeiro nesta terra capaz de deixá-lo inteiro.
- Bom, antes que eu o leve para conhecer meu lar, há mais alguma coisa que vocês desejem conversar? -  Froy faz um gesto em direção ao soldado. Ao seu comando, o sentinela em questão vira um borrão de chamas alaranjadas e vermelhas, correndo até a entrada e de volta em um segundo. Um lépido. Em seus trajes, parece uma bola de fogo.
- A rainha estava prestes a me responder se aceita ou não minha proposta - disse Dylan - Sou muito bom nesse jogo. Será difícil me derrubar.
Os dois podiam não ser irmãos de sangue, mas com certeza tinha o mesmo caráter. Dylan era um lobo e um cordeiro, não era tão bom quanto Froy no disfarce, mas estava tentando. E nenhum dos dois iria brincar comigo novamente.
- Sim. A minha resposta é sim.
                                +++
Luce.

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