Harry.
Vê-la dormir ultimamente era um fenômeno. Raro, esquisito. Principalmente sem os pesadelos. Sem os gritos. E, ainda mais esquisito que isso, era acordar no meio da noite para cuidar dos meus filhos. Meus filhos. Eu nunca soube se seria um bom pai, não com o exemplo que tive. May sabe bem quão nocivo era tê-lo em casa, mesmo depois que a guerra o deixou quase morto.
- Poderia ter me acordado - murmurou ela, sonolenta.
- E perder esses momentos de silêncio? - brinquei.
Consegui arrancar uma risada dela, e então a abracei. Tomei cuidado para não atingir a região do ventre, mas ainda assim eu tive que ter cautela com todo o resto.
- Nossos filhos... - começou Catherine.
Sorri.
- Sim, eles estão bem. Nossa menininha é incrivelmente parecida com você - afirmei - Nosso garotinho é um pouco mais diferente do que você poderia imaginar.
- O que quer dizer? - indagou ela.
Me levantei em um sobressalto, pegando o bebê no colo. Ele abriu os olhos lentamente, relevando suas íris perfeitas. Seus olhos, sua peculiaridade. Cada um de uma cor. Azul e castanho.
Cat quase chorou a ver.
- Ele é lindo.
- A curandeira disse que se chama heterocromia.
- Cameron - soltou ela.
- Príncipe Cameron - continuei - Eu gosto de como soa.
Me levanto e desta vez é a menininha que vem no meu braço.
- É justo que você escolha - disse ela, sorrindo.
Olho para aquela menina. A primogênita, a futura rainha de Ilhures.
- Celeste - murmurei.
Cat assentiu.
- Rainha Celeste - riu ela - Gosto de como soa.
Beijo minha rainha e nossos bebês. O mundo poderia estar caindo aos pedaços, mas minha família e tudo que mais importava para mim estava seguro.
+++
Luce.O dragão cinzento cuspia labaredas de fogo à medida que Mirtes se encolhia atrás de mim. Diferentemente de Freya, a rainha ruiva não conseguia se adaptar à presença da criatura.
- Como você o achou mesmo? - balbuciou ela, me puxando para longe.
- Ele me achou - sorri - Há alguns dias, eu vislumbrei uma figura alada no céu. Eu não conseguia entender o que era, de onde vinha. Até que Catherine foi raptada.
- Ele veio até você? - ela franziu a testa.
- De alguma forma, ela sabia que eu precisava de ajuda - disse - Freya fez uma pesquisa, eles estavam extintos, Mi. Os dragões não são vistos desde a Idade da Pedra.
- E por que Vulcano? - indagou ela - Pelo que me lembro, Vulcano é o...
- Deus do fogo - completou Freya - Justamente por isso o denominamos assim.
O silêncio se estabelece. Não há motivos para tal, ainda que seja constrangedor estar na presença das duas ao mesmo tempo.
- Fique tranquila, Majestade. Não estou aqui para roubar sua namorada - disse a bruxa, sarcástica - Ainda que, bem, você já não namore-a mais.
- Agradeço o esclarecimento, Frey - prosseguiu Mirtes - Agora, se nos dá licença...
- É Freya.
Engulo em seco. Ao meu lado, Vulcano solta fumaça pelas narinas. Ambos sabemos que essa discussão não terminará tão cedo.
+++
Tento aproveitar cada segundo. O ar frio da noite penetra meu rosto exposto, mas felizmente o céu está limpo. Nada de neve, nada de tempestades... ainda. Porque uma tempestade com certeza está se aproximando, seja pela minha mão ou não. E não faço ideia de quem vai sobreviver para ver o sol nascer. Preciso manter a calma, pelo bem dos meus filhos. Não posso aparentar medo, pelos outros. Mas o meu coração dispara no peito, tão alto que receio que todos possam ouvir. Olho para o metal polido e examino o meu reflexo. A garota que vejo é, ao mesmo tempo, familiar e estranha — Catherine, Celeste, rainha vodu —, e ninguém ao mesmo tempo. Ela não parece ter medo. Parece feita de pedra, com traços sóbrios, cabelo dividido e caído sobre os ombros. Eu já tivera mais do que uma quota justa de experiências de quase morte; isso não é algo com que você se acostume. Mas parecia estranhamente inevitável enfrentar a morte outra vez. Como se eu estivesse mesmo marcada para o desastre. Eu havia escapado repetidas vezes, mas ela continuava me rondando. Ainda assim, dessa vez foi diferente. Pode-se correr de alguém de quem se tenha medo; pode-se tentar lutar com alguém que se odeie. Todas as minhas reações eram preparadas para aqueles tipos de assassinos — os monstros, os inimigos. Observei a luz vinda dos faróis em alto-mar. A neve estava enfim assentada ao chão. A Inquisição estava vindo.
***
Eles vieram com pompa, com uma espécie de encanto. Vieram numa formação rígida e convencional. Moviam-se juntos, mas não marchavam; fluíam das árvores numa sincronia perfeita – uma forma escura e ininterrupta que parecia pairar alguns centímetros acima da neve branca, tão suave era seu avanço. O perímetro mais externo era cinza; a cor escurecia a cada fila de corpos até o cerne da formação, intensamente negro. Cada rosto estava encapuzado, ensombrecido. O fraco roçar de seus pés era tão regular que parecia música, uma batida complexa que nunca falhava. A um sinal que não vi – ou talvez não fosse um sinal, só milênios de prática – a configuração se desdobrou. O movimento foi rígido demais, quadrado demais para se assemelhar à abertura de uma flor, embora a cor sugerisse isso; era a abertura de um leque, gracioso mas muito anguloso. As figuras de manto cinza se espalharam nos flancos enquanto as formas mais escuras surgiam precisamente no centro, cada movimento rigorosamente. Seu progresso era lento mas decidido, sem pressa, sem tensão, sem ansiedade. Era o ritmo dos invencíveis. Era quase o meu antigo pesadelo. A única coisa que faltava era o desejo triunfante que eu vira nos rostos de meu sonho – os sorrisos de alegria da vingança. Até agora, a Inquisição estava disciplinada demais para demonstrar qualquer emoção. Nem mesmo duas semanas após o parto eu consegui me recuperar totalmente. Meu corpo e minha mente ainda estavam frágeis. Foquei meus olhos neles, identificando o líder, o novo Inquisidor, Dom Bartolomeu. Estava claro que sua horda heterogênea e desorganizada – mais de quarenta homens reunidos – eram as testemunhas. Quando estivéssemos mortos, eles espalhariam a notícia de que os criminosos tinham sido erradicados, que a Inquisição agiu com absoluta imparcialidade. A maioria parecia esperar por mais que uma oportunidade de testemunhar – queria ajudar a dilacerar e queimar.
E então, inesperadamente, dois segundos depois, a procissão parou. A música baixa dos movimentos em perfeita sincronia transformou-se em silêncio. A disciplina impecável continuou intacta; ficaram absolutamente imóveis. Estavam a cerca de cem metros do castelo de Ilhures.
Atrás de mim, para os lados, ouvi o batimento de corações grandes, mais perto que antes. Arrisquei-me a olhar para a esquerda e para a direita pelo canto do olho, para ver o que havia. O nosso exército.
- Vulcano poderia destruí-los - Luce soltou.
- Não, Luce. Estaríamos arriscando nossa própria inocência. Ao matar esses homens, estaríamos nos tornando o que todos pensam que somos: assassinas, monstros - respondi - Precisamos tentar ser diplomáticos.
- A diplomacia não cai bem em você, Cat - ela sorriu - O palácio de Alhures bem sabe o que a força do seu fogo é capaz de fazer.
Com a menção do reino, logo me veio a lembrança de seu monarca. Froy. Froy e seu bilhete. Em duas semanas,
mais crianças estavam morrendo. Perguntei-me por que sua corte permitira isso, e então me dei conta de que ele não tinha alternativa.De repente, eu me senti furiosa. Mais do que furiosa, eu experimentava uma fúria homicida. Meu desespero desapareceu inteiramente. Um brilho avermelhado e fraco destacou as figuras escuras diante de mim, e tudo o que eu queria nesse momento era a oportunidade de queimá-los com meu fogo ou acionar a terra para arrancar-lhes os membros dos corpos e empilhá-los numa fogueira. Eu estava tão enlouquecida que podia ter dançado em volta da pira onde eles tostariam vivos; eu teria gargalhado enquanto suas cinzas ardiam. Meus lábios se retraíram automaticamente, e um rosnado baixo e feroz rompeu por minha garganta, vindo do fundo do estômago. Percebi que os cantos de minha boca estavam levantados num sorriso. Sobre a clareira branca caiu um silêncio mortal por um longo momento. Eu podia sentir a tensão irradiando de Harry enquanto ele atentava à aproximação de Dom Bartolomeu. Ele andou mais alguns passos, depois inclinou a cabeça para um lado. Seus olhos leitosos cintilavam de curiosidade.
- Não cometemos o crime pelo qual Vossa Eminência está aqui para nos punir - disse o rei de Ilhures - Essas mulheres são minhas anfitriãs, e não há motivos para que duvide de suas condutas.
- Então saia da frente e deixe-nos punir os responsáveis - disse o Inquisidor - Não me entenda mal, Majestade. O rei Froy foi específico: queimar as bruxas, matar as crianças e prender Catherine Millstone.
- Não era de meu conhecimento que a Inquisição agora era encarregada dos trabalhos sujos de monarcas - disse Harry.
Dom Bartolomeu fez uma careta.
- Esses homens estão preparados para uma guerra. Uma guerra que eu quero, sobretudo, evitar.
- Você não vai encostar um dedo nos meus filhos - disse - Vossa Eminência não está em nosso reino para conversar. Suas testemunhas são prova disso.
- Catherine Millstone - ele sibilou - Vossa Majestade não faz ideia do que a aguarda. A morte lhe parecerá uma opção tentadora.
Não pude evitar uma risada.
- Pensava que os ideais da Igreja pregavam a paz. Ou a paz sempre foi comprada, juntamente com as indulgências? - grunhi, furiosa - A época de paz finalmente acabou?
- Em época de paz, os filhos enterram os pais, enquanto em época de guerra são os pais que enterram os filhos - disse ele - Você pode se render, e assim evitar que todos eles morram. Ou, então, pode lutar e vê-los perecer junto a ti.
- Dom Solomon, seu predecessor, havia subestimado a mim e ao meu poder uma vez - disse - Ele me intimidou, queimou minha irmãzinha numa fogueira e tudo isso com respaldo em provas circunstanciais. Entretanto...
- Foi você? - Bartolomeu urrou - Você matou Solomon?
- Queimei a ele e a igreja - murmurei - E, se existir realmente um Deus, deve estar queimando no fogo do Inferno por toda a eternidade.
- Preparem a estaca! - bradou o homem - Homens, peguem-na. Froy de Lancaster terá uma grande decepção ao receber seu corpo carbonizado.
Sorri. Olhei para Harry, impedindo-o de acionar o exército. Em seguida, meu olhar e o de Luce se cruzaram.
- Minha querida Lucinda, falta um convidado nesta reunião - declamei, em alto e bom som - Poderia chamá-lo?
Luce apenas precisou assoviar. Em questão de minutos, o dragão Vulcano sobrevoou o céu acima de nós. E então o fogo desceu como se fosse o fim do mundo.
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Alhures (#2)
Historical FictionEm poucos meses, a vida de Catherine Millstone mudou completamente. Todo o caminho que percorreu até a sua coroação não foi uma coincidência, agora ela sabe. Enquanto usurpava o lugar da princesa Celeste, ela foi obrigada a fingir ser uma nobre, e p...