Chapter IX - Midnight Never Comes

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Froy pega meu queixo e o puxa para cima, me obrigando a olhar para ele.
- Tão teimosa... - Finge lamentar. - Uma das suas características mais intrigantes.
Ele me aperta mais forte, provocando uma explosão de dor na minha mandíbula. O seu toque faz tudo doer, mais e mais e mais. Relutante, encontro os conhecidos olhos azuis no rosto anguloso. Para o meu horror, ele continua igual à lembrança que tenho: o garoto calado, despretensioso, assustado. Não é o Froy dos meus pesadelos, um fantasma de sangue e sombras. É real. Reconheço a determinação em seus olhos. Eu a vi antes de Cameron ser morta. Ele me beijou e prometeu que ninguém me machucaria. As mãos dele passam do meu queixo para a minha garganta e começam a se fechar. O suficiente para impedir minha fala, mas não a respiração. Seu toque queima.
Suspiro, incapaz de puxar ar suficiente para gritar.
Froy. Está me machucando. Pare. Minha visão fica turva novamente, escurecendo. Pontinhos escuros nadam diante os meus olhos.
Espero que ele me aperte ainda mais, mas não. A força permanece constante.  Tento gritar de novo, mas mal consigo soltar um ganido.
- Pare... - consigo soltar, com uma mão no ar, desejando alguém por perto.
Seus olhos parecem sangrar. São os últimos pontos brilhantes no mundo que escurece à minha volta. Azul-claros, cortando minha visão, desenhando linhas retorcidas de gelo doloroso. Me cercando. Não sinto nada além da queimação.
Essa é a última coisa que lembro antes de um lampejo de luz branca, acompanhada de um estrondo, partir meu cérebro. E meu mundo inteiro virar dor. A sensação é esmagadora, mas ao mesmo tempo não vem nada. Está me despedaçando, nervo por nervo, quebrando meus ossos e arrancando meus músculos. Estou mais que destruída debaixo da minha própria pele. Mas isso é demais. Sou como uma represa tentando conter um oceano inteiro. Mesmo que pudesse parar essa coisa, seja o que for, não encontraria um meio de superar essa dor explosiva. Não consigo estender o braço, não consigo me mexer. Estou presa dentro de mim, gritando com os dentes cerrados. Logo estarei morta. Pelo menos isso vai acabar. Mas não acaba. A dor se estende num ataque constante a cada um dos meus sentidos. Ela pulsa, mas nunca diminui. Muda, mas não para. Manchas brancas, mais brilhantes que o sol, dançam na minha frente até uma explosão de vermelho esmagá-las. Tento piscar para afastá-las, para controlar alguma coisa em mim, mas nada parece acontecer. E, se acontecesse, eu não perceberia. Me mate. As palavras se repetem, uma e outra vez. É a única coisa que consigo dizer, a única coisa que quero agora.
Queria não precisar morrer sozinha.
                                +++
- ME MATE!
As palavras queimam na minha boca, rasgando o que deve ser uma garganta em carne viva de tanto gritar. Fico à espera do gosto de sangue. Não, não fico à espera de nada. Só da morte. Mas, à medida que meus sentidos retornam, percebo que não sou apenas carne e ossos. Sequer estou sangrando. Estou inteira, embora com certeza não sinta nada. Num ápice de força de vontade, abro os olhos na marra. Mas, em vez de Froy, encontro olhos castanhos familiares.
- Cat.
Harry não me dá chance de respirar fundo. Seus braços envolvem meus ombros, apertando-me contra seu peito, me levando de volta à escuridão. Não consigo evitar um tremor no corpo com a lembrança da sensação de fogo e eletricidade nos meus ossos.
- Está tudo bem... - cochicha.
Algo no seu jeito de falar me tranquiliza. Sua voz sai grave e trêmula. Ele se recusa a me soltar, mesmo quando recuo involuntariamente. Ele sabe qual é o desejo no meu coração, mesmo quando meus nervos desgastados não conseguem lidar com isso.
- Acabou. Você está bem. Está de volta.
Permaneço imóvel por um momento, enroscando os dedos nas dobras da camisa velha dele. Me concentro em Harry para não precisar sentir meu corpo tremer.
- De volta? - sussurro. - De volta para onde?
- Deixe-a respirar, Wentworth.
Outra mão, tão quente que só pode ser a de Luce, toma meu braço. Ela me segura firme, com uma pressão cuidadosa e controlada, suficiente para me despertar. Isso me ajuda a nadar para fora do pesadelo e retornar completamente para o mundo real. Me inclino para trás devagar, me afastando de Harry para ver onde exatamente estou despertando. Estamos no subsolo, a julgar pelo cheiro úmido e terroso, é um túnel. Estamos bem longe de Alhures, se meu sentido não falha. Trata-se de um abrigo, cavado diretamente no solo, camuflado pela floresta e pela própria forma como foi construído. Tudo aqui parece vagamente róseo. As paredes e o chão estão sujos, e o teto inclinado é feito da própria terra, reforçada com escoras de metal enferrujado. Nenhuma decoração. Na verdade, não há praticamente nada. Alguns lençóis  — o meu entre eles —, pacotes de ração, um candelabro desligado e algumas caixas de suprimentos são as únicas coisas que consigo enxergar.
Suspiro, aliviada, feliz por estar longe do perigo e daquela dor ofuscante.
Harry e Luce me deixam correr os olhos pelo cômodo vazio e tirar minhas próprias conclusões. Eles parecem desfigurados pela preocupação, parecem ter envelhecido em poucas horas. Não consigo deixar de notar as olheiras escuras e as rugas profundas de ambos, me perguntando o que os teria machucado dessa maneira. A luz que vaza pelas janelas estreitas é vermelha e alaranjada. Esfriou; é a noite chegando. Tento levantar, mas ambos estendem os braços para me impedir, mantendo-me bem enrolada no lençol. Agem com um cuidado surpreendente, como se eu fosse quebrar ao menor toque. Luce me conhece melhor e é a primeira a notar minha irritação. Volta a sentar sobre os calcanhares, abrindo um pouco de espaço para mim. Olha para Harry e assente.
- Desculpa. - É a única coisa que passa pela minha cabeça, mas ele faz um gesto com a mão para que eu me cale.
- Você abriu os olhos, Catherine. É tudo o que importa para mim. - Harry diz.
Uma onda de exaustão ameaça me derrubar, mas resisto. Então o toque de Harry deixa o meu braço e sobe para o meu pescoço. Tenho um espasmo com a sensação, surpresa, e o encaro com olhos arregalados e questionadores. A lembrança repentina dele dói. Somada a meu ferimento e o fluxo nauseante de dor, não é de espantar que eu tenha caído de joelhos. Pontos pretos dançam diante dos meus olhos, ameaçando se espalhar e me consumir. Me obrigo a ficar acordada e não vomitar aqui… onde quer que seja. Ele vacila em meus braços, tremendo. Até sua respiração oscila. Está pensando o mesmo que eu.
Isso não pode ser real.
Devagar, Harry se afasta, levando as mãos ao meu rosto. Ele observa meu olhar e repara em cada centímetro do meu corpo. Faço o mesmo, buscando o truque, a mentira, a traição. Está mais pálido do que lembro, com o cabelo curto. Enrolaria como o de Froy se tivesse chance. A barba por fazer contorna suas bochechas, e há alguns cortes pequenos na linha do queixo. Está mais magro, mas os músculos parecem mais rígidos sob meu toque. Só seus olhos continuam os mesmos. Cor de bronze, dourado-avermelhados, como o ferro sob o calor ardente. Eu também estou diferente. Um esqueleto, um fantasma. Ele enrola uma mecha do meu cabelo nos dedos. Então toca minhas cicatrizes. No pescoço, nas costas e então a marca sob o vestido arruinado. Seus dedos são gentis. Sou como vidro para ele, uma coisa frágil que pode se quebrar ou desaparecer a qualquer momento.
- Sou eu - digo a ele, sussurrando as palavras que nós dois precisamos ouvir. - Estou de volta.
Estou de volta.
Ele faz que sim com a cabeça, sem desviar o olhar.
Como ele não se mexe, eu tomo a iniciativa, pegando nós dois de surpresa. Meus lábios encostam nos dele com vontade, e o puxo mais para perto. Seu calor cai sobre meus ombros como um cobertor. Ainda assim, os pelos da sua nuca se arrepiam, respondendo à corrente elétrica no ar. Nenhum de nós fecha os olhos. Ainda pode ser um sonho.
Ele se recupera, tirando meus pés do chão. Uma dúzia de rostos finge não olhar. Não ligo. Que olhem. Não sinto nenhuma vergonha. Já fui obrigada a fazer coisa muito pior diante de uma multidão. Ele percebe minha hesitação quando sua mão percorre meu corpo, então para.
- Curandeiro Reese, ela primeiro - ele diz.
- Claro.
Meu sorriso desaparece no instante em que um homem desconhecido coloca a mão em mim. Seus dedos se fecham em volta do meu pulso. O toque parece errado, pesado. Como pedra. Como Froy. Sem pensar, empurro-o e dou um pulo para trás, como se tivesse me queimado. O horror me corrói por dentro, e fogo sai dos meus dedos. Rostos passam diante dos meus olhos, encobrindo minha visão. Froy, Octavius.
O curandeiro ruivo recua, dando um grito, enquanto Harry tenta acalmar as coisas.
- Cat, ele vai tratar suas feridas. Está do nosso lado.
Ele coloca a mão na parede ao lado do meu rosto, me protegendo. De repente o lugar fica pequeno, e o ar parece rançoso e sufocante. O peso das mãos de Froy se foi, mas não o esqueci. Ainda as sinto nos pulsos e tornozelos. Engulo em seco, fechando bem os olhos, tentando me concentrar. Manter o controle. Meu coração acelera, e os batimentos parecem trovões. Inspiro o ar entre dentes cerrados, tentando me tranquilizar. Você está segura.
Ele coloca as mãos no meu rosto de novo, implorando.
- Abra os olhos, olhe para mim. - Todos os demais permanecem em silêncio. - Cat, ninguém vai machucar você aqui. Acabou. Olhe para mim!
Ouço o desespero em sua voz. Ele sabe tão bem quanto eu o que pode acontecer com o lugar se eu perder o controle.
Tensa, me obrigo a abrir os olhos.
Olhe para mim.
- Lucinda!
Bato os dois punhos no peito de Harry. Ele dá um passo para trás, surpreso com a força. Um tom prateado surge em seu rosto. Ele franze as sobrancelhas, confuso.
- Isso não.
Implorar é natural para mim agora. -
- Tudo menos isso. Por favor. Não posso… não posso me sentir assim de novo.
A asfixia do silêncio. A morte lenta.
Luce assente.
- Tudo bem - ela responde. Com movimentos deliberados, afasta o curandeiro de perto, que leva consigo suas mãos letais. Quase caio, aliviada. - Majestade, o que houve?
Meu coração ainda está martelando, o suficiente para me deixar sem ar, mas as luzes param de piscar. Abaixo a cabeça, mais uma vez aliviada.
Ao meu lado, Harry observa sombrio. Um músculo se tensiona em seu rosto. Não sei dizer o que está pensando. Mas posso adivinhar. Devagar, me deixo cair em um assento vazio, apoiando as mãos nos joelhos. Então entrelaço os dedos e sento em cima das mãos. Não sei o que parece menos ameaçador. Furiosa comigo mesma, olho fixo para o metal sob meus pés. De repente, me sinto desconfortável com o vestido destruído, rasgado em quase todas as costuras, e com o frio que faz aqui dentro. O curandeiro percebe e coloca um cobertor sobre meus ombros. Ele se movimenta sem parar, cumprindo sua função. Quando trocamos olhares, abre um leve sorriso.
- Acontece o tempo todo - ele sussurra.
Forço uma risada, um som oco.
- Vamos cuidar do machucado, tudo bem?
Enquanto me viro para mostrar o corte longo mas superficial nas costelas, Harry senta ao meu lado. Ele também me oferece um sorriso.
Sinto muito, diz apenas movendo os lábios.
Sinto muito, respondo da mesma forma.
Mas não tenho motivos para pedir desculpas. Pela primeira vez. Passei por coisas horríveis e fiz coisas horríveis para sobreviver. É mais fácil assim. Por enquanto. Não sei por que finjo dormir. Enquanto o curandeiro trabalha, meus olhos se fecham e ficam assim durante horas. Sonhei tanto com esse momento que é quase avassalador. A única coisa que consigo fazer é encostar na pedra e respirar com calma. Me sinto como um canhão. Nada de movimentos repentinos. Luce fica ao meu lado, a perna encostada na minha. Ouço se mexer de vez em quando, mas ele não fala com os outros. Ouvir a conversa alheia é instintivo a essa altura. Capto algumas palavras, o suficiente para esboçar um panorama nebuloso. Coma, rainha, caos. A última me faz pensar.
- Por quanto tempo dormi? - indago, quebrando o longo silêncio.
É Luce quem responde.
- Um dia.
- Um dia inteiro?
Suas sobrancelhas se curvam sobre os olhos escuros. Conheço muito bem a dor, mas não encontro forças para vê-la em Lucinda. Olho para baixo, correndo o dedo por sua pele quente. Mais um lembrete de que ela está aqui, assim como eu. Não importa o que aconteça.
- O que aconteceu com você, Cat? - ela pergunta agora que Harry se afastou.
Nossos dedos se entrelaçam. Tento contar o mais rápido possível.
- Cat, eu...
- Não quero que o Harry saiba. Não ainda.
- Eu queria poder te ajudar a esquecer - ela diz.
- Isso não ajudaria em nada.
- Eu sei, mas mesmo assim.
Harry retorna, e é Luce quem se afasta. Mentiras corroem, mentiras enjaulam. E tudo que menos quero agora é me sentir presa novamente. Conto para Harry o mesmo que contei a Luce, mas sem tantos detalhes. Eu penso que ele fará algo descabido, mas Harry chora. E é a primeira vez que o vejo chorar. Nem quando esteve preso pela morte de Amber ele chorou.
- Pensei que fôssemos perder você. - Ele escolheu bem as palavras e formulou a frase com cuidado. Me inclino para a frente e apoio a mão sobre seu punho. É toda a segurança que ele precisa para continuar - Pensei que eu fosse perder você. Tantas vezes...
- Mas ainda estou aqui - digo.
Ele toma meu pescoço entre as mãos, como se não acreditasse em mim. Lembro vagamente do toque de Froy, mas contenho a vontade de me retrair. Não quero que Harry me solte. Estou fugindo há tanto tempo. Desde antes de tudo isso começar. Mesmo nos tempos da Praga, já fugia. Para evitar minha família, meu destino, qualquer coisa que não quisesse sentir. E ainda fujo. Daqueles que querem me matar. E daqueles que querem me amar. Quero tanto parar. Quero tanto ficar quieta, sem me matar nem matar ninguém. Mas é impossível. Preciso seguir em frente. Preciso me machucar para me salvar, machucar os outros para salvar outros.
- Vamos lutar contra ele - Harry diz. Seus lábios se aproximam, quentes a cada palavra. Suas mãos me apertam mais forte, como se, a qualquer momento, alguém fosse me tirar dele - Eu te prometo que esse homem jamais tocará em você novamente. Eu o matarei antes disso.
- É isso que planejamos fazer, e é isso que vamos fazer. Vamos formar um exército, e então matá-lo - sussurro.
- Não vou deixar que ele te machuque de novo.
Sua respiração me faz tremer. O que é uma sensação estranha, já que estou cercada de um calor abrasador.
- Acredito em você - minto.
Porque sou fraca, me viro nos braços dele. Porque sou fraca, pressiono os lábios contra os dele, à procura de algo que me faça parar de fugir, que me faça esquecer.
Ambos somos fracos, ao que parece.
Suas mãos escorregam pela minha pele e sinto um tipo diferente de dor, mais profunda que meus nervos. Dói como um peso oco, vazio. Neste momento, esqueço toda dor.
- A meia-noite nunca chega - ele se irrita.
Como se estivesse esperando somente a fala dele ser proferida, os sinos em algum lugar badalam.
- Feliz aniversário, Cat.
Choro. É 30 de abril. É meu aniversário.
                              +++
Bryan.

Alhures (#2)Onde histórias criam vida. Descubra agora