Chapter XX - From A Cradle To A Grave (Finale)

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Eu nunca pensei muito sobre como iria morrer. Achei que eu tinha motivos suficientes nos últimos meses, mas mesmo que não tivesse, não imaginaria dessa maneira. Segurei a respiração e encarei através do longo aposento. Com certeza essa era uma boa forma de morrer, no lugar de outra pessoa, outra pessoa que eu amava. Nobre, até. O que deve contar para alguma coisa. Eu sabia que se não tivesse substituído Celeste de Pottier naquele dia, naquela circunstância, não estaria encarando a morte agora. Mas, mesmo aterrorizada como estava, eu não lamentava a decisão.
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Harry.

O ar fica mais denso sob um manto de cinzas, o que nos dá alguns segundos para encarar nosso destino iminente. As silhuetas de soldados descem as ruas desde o norte. Ainda não consigo enxergar suas armas, mas um exército não precisa de armas para matar. Outros membros da Inquisição fogem diante de nós, correndo pela avenida desesperados. Talvez consigam escapar provisoriamente, mas para onde? Só há rio e mar à frente. Não há para onde ir, onde se esconder. O exército marcha devagar, em um ritmo estranho, aleatório. Aperto os olhos e me esforço para vê-lo através da poeira. E então me dou conta do que aconteceu, do que Froy fez. Estes homens não estão aqui para lutar. São religiosos, não guerreiros. São peões.
- Cat! - brado.
Não consigo achá-la em meio ao caos e Luce, ao me ver, não diz nada, apenas me observa tremer. Minha mão se fecha em volta de seu braço e ele não reage.
- Veja - digo, apontando.
Sabíamos que os soldados viriam. Mirtes nos disse, nos alertou que Froy mandaria uma legião depois da última batalha. Mas nem mesmo ela poderia ter antecipado isto. Apenas um coração doentio como o de Froy seria capaz de conceber um pesadelo destes. Na verdade nem são soldados. São criados de casacos vermelhos, xales vermelhos, túnicas vermelhas, calças vermelhas, sapatos vermelhos. Tanto vermelho que poderiam estar até sangrando. E ao redor de seus pés, tinindo contra o chão, correntes de ferro. O som arranha meu corpo, abafa os jatos e os mísseis e até as ordens duras vociferadas pelos oficiais de Alhures escondidos por trás da barreira vermelha. As correntes são a única coisa que escuto. Luce fica agitada e solta um grunhido. Froy está usando escravos, prisioneiros, deficientes. Pessoas comuns, civis, para nós retardar. A Inquisição foi apenas uma distração, uma amostra grátis. Uma mensagem clara: se seus soldados queimaram, os nossos e pessoas inocentes também queimarão.
- Temos que continuar em frente - Pyro murmura.
Seus olhos ardem de ódio, mas ele sabe o que deve fazer, o que deve ignorar para sobreviver.
- Harry, venha com a gente agora ou vamos deixar você aí.
As palavras do meu irmão me fazem acordar do transe de horror. Ao ver que não me mexo, toma meu braço e sussurra em meu ouvido na esperança de abafar o ruído das correntes.
- Harry - chama com a voz que usava com minha mãe quando papai ia para a guerra, quando meu pai tinha uma crise respiratória, quando o mundo estava em pedaços.
- Majestade, não podemos fazer nada por eles.
Para a minha eterna vergonha, balanço a cabeça.
- Não, não posso.
Continuamos correndo. Luce não nos segue, procurando Vulcano para garantir sua segurança.
Mais bolas de fogo explodem, cada vez mais rápidas e mais próximas. Mal consigo ouvir alguma coisa além do zunido. Aço e vidro se agitam como capim ao vento, se retorcendo e quebrando até a chuva cortante de prata cair sobre nós. Correr é perigoso demais agora; Pyro segura forte meu braço. Sinto frio na barriga cada vez que a escuridão se fecha sobre nós, e o campo em ruínas vai ficando cada vez mais próxima. Cinzas e pó de concreto atrapalham nossa visão e fica difícil respirar. Vidro se estilhaça numa tempestade reluzente, deixando pequenos cortes no meu rosto e nas minhas mãos, retalhando minhas roupas. Meu irmão parece pior do que eu - suas roupas estão vermelhas de sangue fresco -, mas ele continua em frente, com cuidado para não se afastar. O aperto continua firme, mas ele começa a se cansar, a ficar mais pálido. Não fico inerte; uso minhas mãos para repelir as lascas afiadas de metal das quais nem meu irmão pode nos livrar. Mas não somos o bastante, nem para salvar a nós mesmos.
- Falta muito? - pergunto.
Minha voz soa baixo, afogada pela maré da guerra.
Não consigo enxergar mais do que uns metros à frente através da fumaça e do pó. Mas ainda posso sentir. Somos ratos à espera de que os falcões nos arranquem do chão. Ele passa o braço por cima do meu ombro e me esmaga contra si, com tanta força que quase não suporto. Escuto o zumbido familiar. E é tamanha familiaridade, que minha cicatriz dói. Flechas.
Desta vez, não é a sorte, mas a carne de Pyro que me salva. Uma flecha endereçada a mim o acerta de raspão no braço enquanto outro disparo penetra sua perna. Ele urra angustiado, quase cai na terra rachada sob nós. Sinto a vibração através dele, mas não tenho tempo para dor. Mais flechas cantam pelo ar, rápidas e numerosas demais para lutarmos. Só podemos correr, fugir tanto do campo desmoronando como do exército prestes a chegar. Seguro meu irmão firme, apoiando-o o melhor que posso. Pyro faz mais esforço, aguentando boa parte do próprio peso, de arrastando até uma porta aberta para o palácio. Pulamos para dentro, aliviados em fugir do terror. Mas não é muito. Não por muito tempo. Penso em Cameron e Celeste acima, sozinhos com Lucas e May. Mesmo com dor excruciante, coloco Pyro sentando no pé da escada e grito para que os outros soldados venham socorrê-lo. Livre do peso, engatinho e subo como posso até o quarto deles, ignorando os meus ossos doloridos e meu provável tornozelo quebrado. A porta está escancarada. Um homem careca, com olhos pretos e um sorriso diabólico vira para mim.
- Estava esperando por sua chegada - disse ele, lambendo um dedo cheio de sangue - Vossa Majestade parece péssimo.
- Quem é você? - é a única coisa que consigo falar.
- Meus amigos me chamam de Capricórnio - ele disse, mexendo os dedos e assim fechando a porta - Sua Majestade, o rei Froy, me mandou aqui para terminar um... serviço?
- Onde estão meus filhos? - vocifero - O que fez com eles?
Olho de soslaio para a cama, e quase posso respirar ao ver Celeste dormindo como um anjo. Seu peito infla, provando que está viva.
- Onde está Cameron?
Capricórnio faz um muxoxo.
- Perdão, Majestade. Eu estava com tanta fome... Digo, eu não poderia matar a criança vodu, então a pequena Celeste estava fora de questão...
Meus joelhos cedem.
- Mas não pense muito a respeito. Foi rápido, eu juro. E o gosto era, em síntese, maravilhoso.
Eu não conseguia falar. Gritar. Chorar.
- Não fique tão surpreso. O que esperava? Você mesmo conduziu seu filho do berço ao túmulo ao deixá-lo aqui.
Capricórnio deu uma risada, seu rosto se desfigurando como se ele fosse um demônio. E, naquele momento, ele era um.
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Luce.

Alhures (#2)Onde histórias criam vida. Descubra agora