Chapter XVIII - Birth

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A dor era atordoante.
Exatamente isso - eu estava atordoada. Não conseguia entender, não conseguia perceber o que estava acontecendo. Meu corpo tentava rejeitar a dor, e eu era sugada repetidas vezes para uma escuridão que apagava segundos ou, talvez, até minutos inteiros da agonia, tornando ainda mais difícil acompanhar a realidade. Tentei separá-las. A não realidade era escura e não doía tanto.
A realidade era vermelha e me trazia a sensação de estar sendo serrada ao meio, atropelada por uma carroça, nocauteada por um gladiador, pisoteada por touros, tudo ao mesmo tempo. A realidade era sentir meu corpo se retorcer e saltar quando eu nem ao menos conseguia me mexer, devido à dor. A realidade era saber que havia algo infinitamente mais importante do que aquela tortura e não conseguir lembrar o que era. A realidade chegara rápido demais.
Em um momento, tudo era como devia ser. Eu estava cercada das pessoas que amava. De sorrisos. De certo modo, por mais incrível que fosse, parecia que eu estava prestes a conseguir tudo por que vinha lutando.
Dentro de mim, algo se moveu na direção oposta.
Rasgando. Rompendo. Agonia.
A escuridão havia tomado conta de mim, depois dera lugar a uma onda de tortura. Eu não conseguia respirar - já havia me afogado antes, mas aquilo era diferente; minha garganta estava quente demais. Partes de mim se despedaçavam, rompiam-se, separavam-se... Mais escuridão. Vozes, dessa vez gritos, enquanto a dor voltava. "A placenta deve ter se descolado!"
Alguma coisa mais afiada do que faca me rasgou - as palavras, fazendo sentido apesar das outras torturas. Placenta descolada - eu sabia o que significava. Significava que meu bebê estava morrendo dentro de mim.
"Tirem ele!", gritei. Por que não ainda não tinham feito isso? "Ele não consegue respirar! Tirem agora!"
"Ópio..."
Eles queriam esperar, me dar analgésicos, enquanto meu filho estava morrendo?!
"Não! Agora..." Eu sufoquei, incapaz de terminar a frase.
Manchas pretas bloqueavam a luz da sala quando um ponto gélido de uma nova dor apunhalou meu estômago como gelo. Parecia errado - lutei, automaticamente, para proteger meu útero, meu bebê, meu pequeno, mas eu estava fraca. Meus pulmões doíam, o oxigênio se esgotava. A dor cedeu de novo, embora agora eu me agarrasse a ela. Meu bebê, meu bebê, morrendo...
Quanto tempo havia se passado? Segundos ou minutos? A dor se fora. Torpor. Eu não conseguia sentir. Ainda não conseguia ver também, mas podia ouvir. Havia ar em meus pulmões novamente, bolhas ásperas descendo e subindo por minha garganta, arranhando.
"Agora fique comigo, Cat! Está me ouvindo? Fique! Você não vai me deixar. Mantenha seu coração batendo!"
Harry estava ali.
É claro, eu queria dizer a ele. É claro que eu ia manter meu coração batendo. Tentei sentir meu coração, encontrá-lo, mas estava completamente perdida dentro de meu próprio corpo. Não conseguia sentir as coisas que deveria, e nada parecia estar no lugar certo. Pisquei e encontrei meus olhos. Eu podia ver a luz. Não era o que eu procurava, mas era melhor do que nada. Forcei meus lábios a se moverem, forcei as bolhas de ar a se transformarem em sussurros em minha língua. A luz dançou, refletindo-se nas mãos de cristal da curandeira. As centelhas eram tingidas de vermelho, com o sangue que cobria sua pele. E havia vermelho em suas mãos. Alguma coisa pequena se debatendo, gotejando sangue. Ele colocou o corpo quente em meus braços fracos, quase como se eu o estivesse segurando. A pele molhada era quente - tão quente quanto a de Harry. Meus olhos focalizaram; de repente tudo ficou absolutamente claro. A garotinha não chorou, mas respirava num arfar rápido e sobressaltado. Seus olhos estavam abertos, a expressão tão assustada que era quase engraçada. A cabecinha perfeitamente redonda era coberta por uma grossa camada de cachos emaranhados e sangrentos. Suas íris eram de um tom chocolate familiar - mas impressionante. Sob o sangue, a pele parecia clara, de um marfim cremoso. Tudo, exceto as bochechas, que ardiam de cor. Seu rostinho mínimo era tão perfeito que me deixou atordoada. Ela era ainda mais bonita do que o pai. Inacreditável. Impossível.
- Tão... linda.
O rosto inacreditável de repente sorriu - um sorriso largo e consciente. Por trás dos lábios cor-de-rosa estavam duas fileiras completas de dentes de leite branquinhos.
Ela encostou a cabeça em meu peito, enroscando-se no calor. Sua pele era quente e macia, mas não cedia como a minha.
Então houve dor de novo - um golpe único e quente. Eu arfei.
E ela se foi. Meu bebê com carinha de anjo não estava em lugar nenhum. Eu não podia vê-la nem senti-la.
Não!, eu queria gritar. Devolva minha filha!
Mas a fraqueza era demais. Por um momento meus braços pareceram mangueiras de borracha vazias, depois não pareciam mais nada. Eu não os sentia. Não conseguia me sentir. A escuridão cobriu meus olhos, mais densa do que antes. Como uma venda grossa firme e rápida. Cobrindo não só meus olhos, mas todo o meu eu com um peso esmagador. Era exaustivo lutar contra aquilo. Eu sabia que seria muito mais fácil ceder. Deixar que a escuridão me empurrasse para baixo, cada vez mais fundo, até um lugar em que não havia dor, cansaço, preocupação nem medo.
- O que está acontecendo? - bradava Luce, encurralando a curandeira - O que você está fazendo?
E então, embora eu ainda não conseguisse ver nada, de repente pude sentir uma coisa. Como membros fantasmas, imaginei que pudesse sentir meus braços de novo. E, neles, alguma coisa pequena, sólida e muito, muito quente. Eu tinha conseguido. Aquele foco de calor em meus braços fantasmas parecia muito real. Eu o apertei contra o peito. Era exatamente onde meu coração devia estar. Agarrando-me com firmeza à lembrança calorosa de minha filha, eu sabia que seria capaz de combater a escuridão pelo tempo que fosse necessário. O calor junto ao meu coração foi ficando cada vez mais real, aquecendo cada vez mais. Mais quente. O calor era tão real que era difícil acreditar que eu o estivesse imaginando.
Mais quente.
E, então, estava desagradável. Quente demais. Muito, muito quente.
Mas não havia nada em meus braços. Eles não estavam dobrados junto ao meu peito. Meus braços eram peças mortas que jaziam em algum lugar ao meu lado. O calor estava dentro de mim. O ardor cresceu - aumentou, foi ao máximo, depois tornou a aumentar até que suplantou qualquer coisa que eu já sentira na vida.
- O que está acontecendo? - indagou Harry - O que é isso?
- Tem mais uma criança! Ela deu luz a gêmeos.
Senti a pulsação por trás do fogo devorar meu peito e percebi que tinha encontrado meu coração, bem a tempo de desejar o contrário. De desejar ter abraçado a escuridão enquanto ainda havia essa possibilidade. Queria levantar os braços e rasgar meu peito, arrancar o coração dali - qualquer coisa para me livrar daquela tortura. Mas não conseguia sentir meus braços, não conseguia mover um único dedo.
A flecha, quebrando minhas costelas, abrindo caminho dentro de mim, pedaço por pedaço. Aquilo não era nada. Era como flutuar num mar de água fria. Preferiria aquilo multiplicado por mil. Aceitaria, e ficaria grata. O fogo ardeu mais quente e eu quis gritar. Implorar para que alguém me matasse antes que eu vivesse mais um segundo daquela dor. Mas não consegui mover meus lábios. O peso ainda estava ali, me comprimindo. Percebi que não era a escuridão que me prendia à mesa; era meu corpo. Pesado demais. Enterrando-me nas chamas que agora abriam caminho a dentadas a partir do meu coração, propagando-se com uma dor insuportável pelos ombros e pela barriga, escaldando minha garganta, lambendo meu rosto. Por que eu não conseguia me mexer? Por que não conseguia gritar? Aquilo não estava nas histórias. Minha mente estava insuportavelmente lúcida - aguçada pela dor feroz - e eu encontrei a resposta quase no mesmo instante em que formulei as perguntas.
O ópio.
E por um período interminável era só o que havia. Só a tortura causticante e meus gritos mudos, implorando pela morte. Nada mais, nem mesmo o tempo - o que tornava aquilo infinito, sem início nem fim. Um momento infinito de dor. A única mudança veio quando de repente, inacreditavelmente, a dor duplicou. A metade inferior do meu corpo, entorpecida desde antes do ópio, de repente também estava em chamas. Alguma conexão rompida tinha sido curada - refeita pelos dedos abrasadores do fogo.
O ardor interminável prosseguia em sua fúria.
- É um menino. Parabéns, Majestade. Vocês têm um casal.
                               +++
Luce.

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