PARTE III (de IV)

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Texto e Artes: Fabio Q www.instagram.com/fabioquill

Revisão: Lucy Fracchetta

Texto e Artes: Fabio Q www.instagram.com/fabioquill

Revisão: Lucy Fracchetta

Fugir.

Desaparecer.

Pensamentos íntimos que nunca foram além do devaneio, agora são reais.

O que é concreto pesa.

Em passos apressados Eleonor traz o refrigerante, agarrando-o com forças que ultrapassam a necessidade.

O sonho retorna a mente.

A avó também.

A voz enfraquecida pela idade, o carinho e as histórias que era dada a contar.

–Você pode não acreditar, minha fia –dizia, adiantando o tom de fábula ­– Mas é a pura verdade.Minha irmã encontrou um pássaro. Estava machucadinho. Ela trouxe ele aqui pra casa e minha mãe ficou assustada. Disse que era pássaro de gente bacana e que deviam estar procurando ele por aí. Ela queria que Nina soltasse o bichinho, mas ele estava tão fraquinho, tão fraquinho que não tivemos coragem. Que pássaro lindo, a gente nunca tinha visto um igual. Era dado a umas cantorias de assobio. Ás vezes, tinha horas, que parecia que ele falava com a gente. Tinha uma crista grande, que lindo. Com todo o cuidado que demos ele foi ficando forte. – a tosse retarda segundos da narrativa – Um dia demos a falta do bicho. "Nina, Nina o Lulu fugiu." Tínhamos dado até um nome pra ele, cê acredita menina? "Não fugiu não. Eu o comi", ela disse. "Comeu? Como assim comeu? Ele me pediu e eu comi."

Perdida nestes devaneios, Eleonor não percebeu que havia percorrido todo o trajeto. Foi o cunhado que a fez perceber onde estava.

–Nossa, o que é isso? Desse jeito eu não me seguro, Lezinha. Tá cada dia mais gostosa. Aonde vai com toda essa beleza? – O olhar a devora enquanto traga o cigarro.

O cigarro ele fumava fora. Dona Vasti não admite que fumem dentro de sua casa.

Mal Eleonor formulou uma resposta, sua irmã saiu a porta.

–Até que enfim ein, Lê. Vamos, entrem que o almoço já esta na mesa.

–Eu ia falando aqui pro seu mari...

–É, a gente falava como é bom estarmos em família não é, Eleonor? – Armandinho a corta ameaçadoramente.

Eleonor passa por eles rosnando pra dentro. Deposita o refrigerante na pequena mesa e enterra o corpo n acadeira sepultando a denúncia que guarda há alguns anos.

–Vamos gente, sirvam seus pratos. –orienta em tom alto Dona Vasti.

*   *   ]*

Não pode ser o Eduardo, o vilão. Ah,aquele Plínio é que não me engana. Essa novela é uma baixaria só!A última semana da novela das oito rende assunto enquanto Armandinho assiste alheio ao jogo de futebol na TV. Sai para fumar.Volta e política se torna a discussão. Os deputados nunca vão ser punidos.Brasileiro é trouxa mesmo. O mundo está perdido, ninguém mais tem vergonha na cara. Armandinho sai para fumar. Acaba o jogo na TV.Assassinato em massa no estrangeiro ganha a pauta que é substituída pela aparição do filho recém nascido da cantora de Forró, sua separação e seu novo amor. Armandinho sai para fumar. Igreja,pastores, certo, errado, estudos, trabalho, patrões, cansaço,transporte público, aumento no preço do feijão, o leite misturado com produtos químicos. Enquanto a tarde segue e os assuntos mudam, o tempo de reunião familiar é preenchido até findar o dia. Para Eleonor, o dia passa com sabores de prenuncio de algo novo.

*   *   *

O telefone toca.

Insiste.

Insistente, acorda Eleonor.

Amanhã está clara na luz que invade a janela.

Ligação perdida.

Ela retorna a ligação.

A cobrar. Não tem crédito.

Vado não atende.

Liga novamente.

Nada.

Deixa o telefone de lado e prepara o café.

Coa o pó preto em água quente. Passa a margarina no pão amanhecido. O café é a refeição mais importante do dia, diz a apresentadora do programa de variedades na TV.

O bilhete escrito em papel de pão substitui a presença da mãe à mesa: "Tem feijão no congelador, a mãe liga pra saber se tá tudo bem."

Prato para comer com os olhos na tela da TV. Em déjà vu recebe a frequente visita da avó. A etérea e insistente visitante leva Eleonor a lembrança de uma velha caixa sobre o guarda-roupas. Apressada, improvisa a cadeira como escada e pega a caixa. Remove a tampa vestida de poeira. Solitários brincos que já foram par, correntes que perderam fecho, pilhas usadas,canetas sem tinta e outros objetos inúteis dividem o espaço com as memórias familiares. Fotos. Sentada sobre a cama, Eleonor apanha um punhado delas. Sorri quando vê a irmã emburrada na imagem de infância. Estão também eternizadas infantes: Eleonor e as vizinhas Tica e Leca. Riu com pequenas lembranças de criança. Tica e Leca,ela nunca mais viu.

A roupa dos pais, calças boca-larga, cabelos black power ganham graça também.

A avó enfim aparece. Fotos. Algumas tão desbotadas. Quase fantasmagóricos retratos.

Fotos.Gente que ela nunca conheceu. Tio-avós, primos distantes, bisavós?Quem sabe. Nitidez. O polegar acaricia o papel. As lágrimas escapam e o sorriso divide espaço com o longo suspiro. Nitidez ou memória?Urgência. Pega tudo e lança dentro da caixa. Pega algumas mudas de roupa, sabonete, escovas e pasta de dentes. Enfia tudo dentro da mochila. Devolve a pasta; era a última da casa. Nitidez. Memórias.Duas fotos não voltam pra caixa e são cuidadosamente colocadas no bolso da jaqueta. Fotos. Urgência. Pensa em deixar um bilhete.Lembra das enfáticas instruções de Vado e desiste.

Sai.

*   *   *

CONTINUA...

Filhas de Quimera - Ou Fábulas Nunca MorremOnde histórias criam vida. Descubra agora