Texto e Artes: Fabio Q www.instagram.com/fabioquill
Revisão: Lucy Fracchetta
Texto e Artes: Fabio Q www.instagram.com/fabioquill
Revisão: Lucy Fracchetta
Fugir.
Desaparecer.
Pensamentos íntimos que nunca foram além do devaneio, agora são reais.
O que é concreto pesa.
Em passos apressados Eleonor traz o refrigerante, agarrando-o com forças que ultrapassam a necessidade.
O sonho retorna a mente.
A avó também.
A voz enfraquecida pela idade, o carinho e as histórias que era dada a contar.
–Você pode não acreditar, minha fia –dizia, adiantando o tom de fábula – Mas é a pura verdade.Minha irmã encontrou um pássaro. Estava machucadinho. Ela trouxe ele aqui pra casa e minha mãe ficou assustada. Disse que era pássaro de gente bacana e que deviam estar procurando ele por aí. Ela queria que Nina soltasse o bichinho, mas ele estava tão fraquinho, tão fraquinho que não tivemos coragem. Que pássaro lindo, a gente nunca tinha visto um igual. Era dado a umas cantorias de assobio. Ás vezes, tinha horas, que parecia que ele falava com a gente. Tinha uma crista grande, que lindo. Com todo o cuidado que demos ele foi ficando forte. – a tosse retarda segundos da narrativa – Um dia demos a falta do bicho. "Nina, Nina o Lulu fugiu." Tínhamos dado até um nome pra ele, cê acredita menina? "Não fugiu não. Eu o comi", ela disse. "Comeu? Como assim comeu? Ele me pediu e eu comi."
Perdida nestes devaneios, Eleonor não percebeu que havia percorrido todo o trajeto. Foi o cunhado que a fez perceber onde estava.
–Nossa, o que é isso? Desse jeito eu não me seguro, Lezinha. Tá cada dia mais gostosa. Aonde vai com toda essa beleza? – O olhar a devora enquanto traga o cigarro.
O cigarro ele fumava fora. Dona Vasti não admite que fumem dentro de sua casa.
Mal Eleonor formulou uma resposta, sua irmã saiu a porta.
–Até que enfim ein, Lê. Vamos, entrem que o almoço já esta na mesa.
–Eu ia falando aqui pro seu mari...
–É, a gente falava como é bom estarmos em família não é, Eleonor? – Armandinho a corta ameaçadoramente.
Eleonor passa por eles rosnando pra dentro. Deposita o refrigerante na pequena mesa e enterra o corpo n acadeira sepultando a denúncia que guarda há alguns anos.
–Vamos gente, sirvam seus pratos. –orienta em tom alto Dona Vasti.
* * ]*
Não pode ser o Eduardo, o vilão. Ah,aquele Plínio é que não me engana. Essa novela é uma baixaria só!A última semana da novela das oito rende assunto enquanto Armandinho assiste alheio ao jogo de futebol na TV. Sai para fumar.Volta e política se torna a discussão. Os deputados nunca vão ser punidos.Brasileiro é trouxa mesmo. O mundo está perdido, ninguém mais tem vergonha na cara. Armandinho sai para fumar. Acaba o jogo na TV.Assassinato em massa no estrangeiro ganha a pauta que é substituída pela aparição do filho recém nascido da cantora de Forró, sua separação e seu novo amor. Armandinho sai para fumar. Igreja,pastores, certo, errado, estudos, trabalho, patrões, cansaço,transporte público, aumento no preço do feijão, o leite misturado com produtos químicos. Enquanto a tarde segue e os assuntos mudam, o tempo de reunião familiar é preenchido até findar o dia. Para Eleonor, o dia passa com sabores de prenuncio de algo novo.
* * *
O telefone toca.
Insiste.
Insistente, acorda Eleonor.
Amanhã está clara na luz que invade a janela.
Ligação perdida.
Ela retorna a ligação.
A cobrar. Não tem crédito.
Vado não atende.
Liga novamente.
Nada.
Deixa o telefone de lado e prepara o café.
Coa o pó preto em água quente. Passa a margarina no pão amanhecido. O café é a refeição mais importante do dia, diz a apresentadora do programa de variedades na TV.
O bilhete escrito em papel de pão substitui a presença da mãe à mesa: "Tem feijão no congelador, a mãe liga pra saber se tá tudo bem."
Prato para comer com os olhos na tela da TV. Em déjà vu recebe a frequente visita da avó. A etérea e insistente visitante leva Eleonor a lembrança de uma velha caixa sobre o guarda-roupas. Apressada, improvisa a cadeira como escada e pega a caixa. Remove a tampa vestida de poeira. Solitários brincos que já foram par, correntes que perderam fecho, pilhas usadas,canetas sem tinta e outros objetos inúteis dividem o espaço com as memórias familiares. Fotos. Sentada sobre a cama, Eleonor apanha um punhado delas. Sorri quando vê a irmã emburrada na imagem de infância. Estão também eternizadas infantes: Eleonor e as vizinhas Tica e Leca. Riu com pequenas lembranças de criança. Tica e Leca,ela nunca mais viu.
A roupa dos pais, calças boca-larga, cabelos black power ganham graça também.
A avó enfim aparece. Fotos. Algumas tão desbotadas. Quase fantasmagóricos retratos.
Fotos.Gente que ela nunca conheceu. Tio-avós, primos distantes, bisavós?Quem sabe. Nitidez. O polegar acaricia o papel. As lágrimas escapam e o sorriso divide espaço com o longo suspiro. Nitidez ou memória?Urgência. Pega tudo e lança dentro da caixa. Pega algumas mudas de roupa, sabonete, escovas e pasta de dentes. Enfia tudo dentro da mochila. Devolve a pasta; era a última da casa. Nitidez. Memórias.Duas fotos não voltam pra caixa e são cuidadosamente colocadas no bolso da jaqueta. Fotos. Urgência. Pensa em deixar um bilhete.Lembra das enfáticas instruções de Vado e desiste.
Sai.
* * *
CONTINUA...
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Filhas de Quimera - Ou Fábulas Nunca Morrem
Kısa HikayeEleonor busca saída da vida que não suporta mais e uma lenda familiar ressurge misturando sonhos, pesadelos e desejos de mudança.