A criança que eu quero ser

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Acho que eu deveria parar de ser muito melindroso, senão acabaria criando ciúmes em meus irmãos. Além do mais, eu não vim para cá para me tornar anjo, mas sim, para ser eu mesmo.

Voltei a me sentar com os irmãos no chão da sala.


A criança que euquero ser.


Cinco minutos depois, um barulho estranho de motor em frente à casa chamou minha atenção.

Corri até o local e me deparei com uma ximbica, conduzida por João Cardoso, que fora nosso vizinho de sítio e eu até marquei minha importante presença em seu casamento antes de nossa mudança para a cidade.

Descendo do outro lado de tal veículo, revi meu pai. Meu coração bateu forte, acho que de alegria. Fazia quase vinte anos que não o via e assim mesmo em seu funeral, no qual ele morrera muito novo, aos sessenta e oito anos, perdendo a batalha para o terrível câncer no pulmão.

Agora ali, todo sujo, carregando um balde de tralhas de sua profissão de pedreiro, se despedira do companheiro de trabalho e seguira ao meu encontro. Quer dizer... ele seguia em direção a adentrar em sua recém construída residência e eu, ansioso o aguardava no portão para receber um gostoso abraço.

Ele passou ao meu lado sem sequer notar tão pequena criatura que o aguardava.

Tudo bem! Com as duas mãos ocupadas não teria mesmo como fazer tal sacrifício.

Acompanhei-o até o final da residência, onde ele deixou seu material, cobrindo-o com um velho saco plástico, depois seguiu para a cozinha, quase atropelando minha mãe sem sequer dizer um "oi".

Foi até o fogão, apanhou um canecão cheio de água fervendo que a esposa já deixara no jeito, levou até o banheiro, onde despejou tal água em um chuveiro improvisado à base de um balde com bico de regador soldado em seu fundo cortado; seguiu até o poço de sarilho, buscando um balde de água fria, à qual misturara na água fervente.

Quando ele, sem mencionar uma palavra, já ia fechar o banheiro para sua privacidade, interrompi-o:

— Papai, eu estava com muitas saudades do senhor.

— Ãh! — não entendeu ele.

— Fazia muito tempo que não via o senhor! — Continuei.

— Verdade! — Riu ele. — Dez horas!

— Posso lhe dar um abraço?

Ele franziu a boca e ombros e se abaixou para receber, talvez o primeiro abraço que eu até então teria dado nele em nossas vidas.

— Te amo, papai!

Ao se desfazer de tal abraço, ele ainda me segurando, alegou:

— O que há com você?

— Nada! Só saudades!

— Tá! Também te amo.

Entrou para o banho e eu, almejando que faria o mesmo, enchi o canecão de água fria, levei sobre o fogão de lenhas da cozinha e voltei para a sala brincar com os irmãos.

É®Ê

Na manhã seguinte, ao vestir uniforme para ir à escola, mamãe apareceu na porta do quarto e me jogando uma cueca samba canção feita por ela mesmo à base de saco de farinha de trigo, disse:

Através das Barreiras do tempoWhere stories live. Discover now