II

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- Ícaro? Acorda.

Abri os olhos lentamente por causa da luz do sol. Minha boca estava seca e meus pés gelados. Sentei no divã, sentindo as costas estalarem. Grunhi de dor, massageando o local com as pontas dos dedos.

- Por que está dormindo aqui? Você já tem trinta e sete anos, não deveria dormir todo torto no divã do escritório.

- Obrigado por dizer que já estou velho, Magda - dei um sorriso sonolento para ela.

Magda se virou para mim e sorriu. A pele negra de seu rosto brilhava com a luz que vinha do lado de fora, e seus cabelos brancos estavam amarrados em um rabo de cavalo discreto. Ela usava um vestido preto e sapatos baixos, e os brincos nas orelhas cintilavam com a luz enquanto ela colocava uma bandeja sobre a mesa de vidro do meu escritório, onde eu havia passado o resto da noite.

- Achei que devia estar com fome - ela apontou para a bandeja, que tinha uma tigela com salada de frutas, café preto e pão integral.

Me espreguicei, coloquei os óculos no rosto e sentei-me em minha cadeira para tomar café. Magda se sentou na cadeira do outro lado da escrivaninha, comendo um pedaço de pão com geleia. Havia círculos escuros em volta de seus olhos, que estavam vermelhos.

- Está tudo bem? - perguntei, limpando a boca com um guardanapo. - Você parece cansada.

- Foi uma noite complicada - ela respondeu. -Gilberto está piorando, Ícaro. Essa noite ele quase caiu no chão enquanto tentava pegar uma caixa no armário às três da manhã.

- Caixa? - percebi que ela não o chamava mais de "senhor" Gilberto. - Que caixa?

- Umas coisas antigas da dona Helena - ela respondeu, suspirando tristemente. - Ele pode estar com Alzheimer, mas aquela caixa é uma das únicas coisas que ele não consegue esquecer. Ele nem se lembra de que dia é hoje.

Fiquei em silêncio, subitamente perdendo a fome. Em seus setenta e oito anos, Gilberto Sartoria estava perdendo uma batalha contra o Alzheimer. Sua memória ia e voltava, mas de uns meses para cá, ele vivia piorando. E não lembrar que hoje marcava vinte anos do suicido de sua esposa era um enorme indício de que as coisas estavam chegando em um estado crítico.

- Não vai contar para ele, não é?

- Acho melhor não - Magda mexeu as mãos nervosamente. - Que benefícios isso traria para ele? É melhor deixa-lo em paz com as memórias que lhe restam.

Balancei a cabeça, concordando. Durante toda a vida, Gilberto fora um homem duro e direto, à moda antiga. Por vezes passava dos limites, mas vê-lo naquele estado me causava um sentimento de pena.

- E Edgar, já o viu hoje?

Ao ouvir o nome de Edgar, Magda torceu o nariz em desgosto.

- Duarte me contou o que houve noite passada - ela disse. - Irresponsável. Fui no quarto de vocês e ele estava sem roupa, dormindo todo espalhado pela cama e roncando como uma buzina de barco. É por isso que você veio dormir aqui essa noite?

Meu escritório ficava no segundo andar da casa, ao lado do meu quarto com Edgar. Lembrei da noite anterior, do cheiro de perfume masculino em sua roupa, a aliança do nosso casamento que ele não estava usando, e meu estômago embrulhou. Ainda não estava pronto para pensar naquilo ainda, então apenas confirmei com a cabeça.

- Você sabe como Edgar fica perto do aniversário de morte da mãe - eu disse. - Mas... eu não consigo lidar com pessoas bêbadas, muito menos ele. E como Edgar não aparece na escola há umas duas semanas, o trabalho extra dobra para mim.

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