VII

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Minha mão foi instintivamente até meu cotovelo, onde a antiga tatuagem ficava, que havia substituído por uma tatuagem de penas e pássaros ao longo do antebraço. Ele pareceu notar o gesto e ergueu uma sobrancelha.

- Não esperava ver você aqui - ele disse. - Pensei que Edgar era dono disso tudo aqui.

Ele falou o nome de Edgar com certo desprezo, mas decidi ignorar.

- A família está passando por... momentos difíceis - respondi, querendo na verdade dizer que meu ex marido era um irresponsável e eu deveria fazer as coisas para ele. - A surpresa é você aqui.

O rosto de Thiago ficou vermelho, e ele coçou o lado de trás do pescoço.

- É o meu filho, Caio - ele parecia relutante em responder. - Fui chamado porque ele tve má conduta em sala de aula.

E, como um estalo, tudo se encaixou. O garoto que havia feito xixi na lixeira da sala de aula, e uma lembrança de anos atrás, quando eu e Thiago ainda estávamos nos conhecendo, e eu rolava de rir enquanto ele me contava a mesma história, de que quando era pequeno ele simplesmente fez xixi na lixeira da sala de aula.

Não resisti e dei uma risadinha.

- Então o Caio é seu filho? Você tem um filho?

- Qual o espanto? - ele perguntou.

Queria responder que meu espanto é que ele era gay, e que a situação ficava mais incomum quando eu lembrava da palavras de Caio no fatídico dia, dizendo que sua mãe havia viajado e ele morava com o pai agora.

- Então você se casou com uma mulher?

- Sim, mas somos separados agora. Foi... uma experiência não muito agradável. Mas pelo menos ganhei o meu bem mais precioso - ele respondeu, e parecia orgulhoso.

- Eu entendo - algo borbulhou em meu estômago, e eu não sabia o que dizer. - Olha, me desculpa mesmo, eu realmente preciso ir agora. Emergência familiar.

- Então você se casou mesmo com Edgar Sartoria? - havia um quê de desdém em sua voz.

- Sim, mas estamos... dando um tempo.

- Dando um tempo para mim significa "estamos separados" - um pequeno sorriso surgiu no canto de sua boca,

Revirei os olhos.

- Preciso ir - respondi. Peguei um bloco de notas, anotei meu número pessoal e entreguei a Thiago. - Toma, me liga qualquer hora, para explicar o ocorrido com o seu filho. Mas agora eu realmente preciso ir.

Não esperei ele dizer mais nenhuma palavra; peguei minha bola e saí do escritório. O Uber que eu havia requisitado havia cancelado, então passei longos cinco minutos procurando por um táxi disponível. Assim que encontrei um, me joguei para o banco do carona e prometi cinquenta reais de gorjeta caso ele chegasse ao hospital em quinze minutos ou menos.

Enquanto o táxi costurava o tráfego, peguei meu celular e liguei novamente para Edgar, mas seu celular estava desligado. Não arrisquei ligar para Magda, sabia que ela estaria ao lado de Gilberto e não sairia de perto dele nem para me atender. Então disquei o número de Bruna, que me atendeu no terceiro toque.

- Olá querido, como está se sent...

- Thiago Casanova acabou de aparecer no meu escritório lá na escola! - Eu berrei. - Você sabia disso? Sabia que ele estava casado com uma mulher? Que ele tem um filho?

Silêncio por alguns segundos.

- Sim, eu sabia do Caio, e sabia do casamento - Bruna disse. Respirei fundo mas, antes de dizer qualquer coisa, ela me cortou - você nem comece a me culpar por alguma coisa, Ícaro Markan, foi você que não quis saber nada sobre a vida dele.

Respirei fundo algumas vezes, tentando me acalmar.

- Desculpa, é tanta coisa... - minha voz ficou carregada de choro. - Eu estou indo para o hospital agora, Gilberto piorou bastante e... achamos que ele não passa de hoje.

- Meu Deus... - Bruna parecia estarrecida. - E Edgar? Deu algum sinal de vida?

- Liguei para ele e expliquei o que estava acontecendo, eu só espero que tenha sobrado um pouco de humanidade nele e que ele apareça nos últimos momentos do pai.

- Por favor, assim que tiver alguma notícia, me avise urgentemente - pediu Bruna. - E seja forte, tudo bem? Muitas pessoas vão precisar da sua força nesse momento.

Ela desligou, e eu fiquei mais inquieto ainda. O trânsito não estava lento, sendo assim cheguei ao hospital em dez minutos. Fui até o balcão de informações, dando o nome de Gilberto, e um médico de jaleco branco apareceu para me acompanhar até o quarto onde ele estava.

Os corredores pareciam labirintos brancos. O cheiro de desinfetante e produtos esterilizados era latente e me causava enjoo, assim como a iluminação forte. Ouvi o choro de Maga antes de entrar no quarto, acompanhado com o beep, beep do monitor de batimentos cardíacos.

Magda levantou a cabeça e foi até mim, me abraçando com força. Apertei-a, sentindo seus soluços, enquanto olhava para a cama, para Gilberto. Sua respiração saía pesada, forte. Me aproximei e me ajoelhei ao seu lado. Ele me olhava, mas era como se não me visse ali. Segurei a sua mão.

- Ícaro - ele disse. - Me... me desculpe por tudo. Tudo... você vai entender, mas me perdoe, eu... estava pensando no seu bem.

Não tinha ideia do que ele falava, mas apertei a sua mão com delicadeza enquanto dizia:

- Eu o perdoo.

- Obrigado por... por cuida d-de... Edgar todos esses anos - sua voz estava cada vez mais fraca. - Eu sinto tanto por ele, queria ter feito tanta coisa d-diferente...

- Fique tranquilo - respondi, tremendo. - Ele te perdoará, tenho certeza disso.

- Ele... é um menino bom, ele... - Gilberto então olhou parra cima, para o teto, e com muito esforço seus olhos se arregalaram e ele pareceu sorrir. - Helena, meu amor... - ele disse, estendendo a mão para o alto. - Você... você veio me levar com você. Eu te amo, meu amor, eu te amo tanto. Obrigado pela... vida maravilhosa que... você me deu. Eu... estou pronto agora.

Seus olhos tornaram a se arregalar. Gilberto deu uma longa arfada, como se tivesse submerso em água por um longo tempo e finalmente tivesse ar para respirar. Sua mão então foi baixando lentamente e caiu sobre seu colo, enquanto o beep, beep do monitor cardíaco fora substituído por um barulho contínuo, como uma TV fora do ar.

Desatando a chorar, Magda se jogou sobre o corpo dele, já sem vida. Seus olhos estavam arregalados, e eu os fechei gentilmente com a ponta dos dedos. Era isso, então. Gilberto Sartoria estava morto.

Eu me sentia... vazio. Não sabia o que fazer. Coloquei a mão no ombro de Magda, que chorava copiosamente e soluçava, enquanto os médicos retiravam os aparelhos do corpo. Notei então, pela primeira vez, que Gilberto parecia... sereno. Como se estivesse finalmente descansando em paz.

- Pai?

Eu e Magda nos viramos para ver Edgar parado na porta do quarto do hospital. Ele vestia uma bermuda e uma camisa rasgada, e parecia ter levado um soco no olho. Sua pele estava pálida, e ele parecia completamente abatido. Ele encarava o corpo de Gilberto e sua boca se abriu ligeiramente.

- Eu cheguei tarde demais - seus olhos estavam vagos. Ele não se mexia. - Eu cheguei tarde demais.

Me levantei e fui até ele, que havia deixado as semanas de hostilidade de lado e me abraçado, chorando em meu ombro.

- Ele se foi - ele dizia entre soluços. - Ele se foi sem o meu perdão. Eu cheguei tarde demais, meu Deus, não - ele quase gritava. - Não, meu Deus, não...

- Edgar, calma - tentei soar razoável apesar de tudo. - O importante é que você o perdoou, e seja lá onde ele estiver, ele sabe disso. Suas últimas palavras foram sobre você, sobre como ele errou com você e de como acha que você era uma boa pessoa. Ele sabia.

Edgar olhou para mim com os olhos vermelhos e o peito arfando, e então, como se uma corda invisível que o segurasse tivesse sido cortada, ele caiu no chão, desmaiando.

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