XI

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Capítulo escrito por Higor Casangrande.

Que seu erro se transforme em historia.



Eu nunca pensei que carregaria Ícaro no colo novamente, principalmente nessas circunstâncias. Ele estava completamente bêbado, e simplesmente dormiu no meio de uma frase. Não demorou muito para que ele começasse a roncar de leve. Segurei um sorriso; eu conhecia aquele barulho. Havíamos dormido juntos várias vezes para saber como ele se comportava durante o sono.

Não pensei duas vezes: tirei seus óculos com cuidado, guardei-o no bolso e peguei Ícaro no colo, levando-o até o carro com certa dificuldade. Ícaro não se mexia, e eu quase caí várias vezes por causa da areia fofa da praia. Também foi uma dificuldade destrancar o carro e colocá-lo no banco do carona, mas de algum jeito consegui. Ícaro se aninhou no banco e encostou a cabeça no vidro da janela, a boca levemente aberta. Voltei para a praia e peguei as coisas, e em cinco minutos o carro já cortava a estrada. Eu sabia que não podia levá-lo para casa naquelas condições, então era melhor eu levá-lo para a minha casa. Com certeza ele reclamaria quando acordasse, mas não tinha muito que fazer.

Diversos pensamentos passaram pela minha cabeça nesse meio tempo. Lembrei-me do início da minha adolescência e de todas as escolhas que fiz, desde as certas até as erradas. Procurei tentar entender onde as coisas haviam mudado de percurso, onde a maré tinha começado a ficar imprevisível. Recordei o meu namoro com Ícaro, a viagem para Portugal e talvez tenha encontrado o ponto de transmutação da minha vida.

Era óbvio que meu intercâmbio havia sido divisor de águas na minha vida, tudo que se seguiu dali em diante foi totalmente relevante para formar o homem que sou hoje. Se colocássemos o Thiago dos meados dos seus vinte anos ao lado do Thiago atual, como no Homem Vitruviano de da Vinci, com as lembranças ao fundo, perceberíamos cada detalhe minimalista de sua evolução. Não sei se me tornei o homem que as pessoas esperavam que eu me tornasse, nem mesmo sei se sou o que almejava. Ainda me restam dúvidas se sou o que sou, ou se sou um reflexo de diversos anos de paixões e planos mal sucedidos - e eu espero realmente que esta segunda opção não seja a verdadeira, já que lutei muito para tentar não ser uma cópia de alguém.

Esse pensamento fez eu encarar Ícaro, que dormia pesadamente com a cabeça encostada no vidro. Em todos esses anos nunca havia parado para pensar que Ícaro havia sido influenciado por aquele infeliz evento tano quanto eu fui, e pensar nisso fez meu coração palpitar. Vinte anos atrás, Ícaro havia me dito que não queria que eu fosse uma cópia de ninguém, que queria que eu fosse autêntico. Mas será que sou? Ou sou apenas uma reprodução de outro alguém? Talvez fosse uma pergunta interessante a fazê-lo.

Tentei afastar minha cabeça desses pensamentos, focando nas letras de 'Money' que tocava baixinho vindas do meu velho The Dark Side of the Moon. Pretendia chegar em casa antes da música seguinte começar. As ruas estavam desertas, e eu batucava o dedo repetidamente no volante. Parei no sinal vermelho e o cordão de quartzo verde pendurado no retrovisor do carro. Peguei-o e o coloquei em meu pescoço, a pedra fria repousando sobre o meu coração.

Parei o carro na entrada, tendo o maior cuidado para não fazer muito barulho. Novamente a dificuldade em transportar Ícaro apareceu, mas já havia pegado o jeito. Não era muito diferente de levar Caio do sofá para a cama, fazia aquilo quase todos os dias. A diferença era no peso, já que Ícaro era um homem adulto.

Abri o portão com os pés e arrastei a sola do meu tênis pela entrada até a porta. Apoiando as pernas de Ícaro na parede, pude pegar as chaves no meu bolso e entrar. A TV estava ligada como de costume e pude ver de relance algumas crianças correndo ao redor de um palhaço. Letícia estava revendo um de seus clássicos favoritos antes de cair no sono no sofá. Aprumei a coluna e ajeitei Ícaro em meu colo para poder subir as escadas.

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⏰ Última atualização: Aug 08, 2019 ⏰

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