Carta de suicídio para Mary

188 60 37
                                    

Há muito o mundo se escureceu para mim, tu há de me entender, entender que eu não escolhi que as coisas fossem assim.
É que no desenrolar de meus dias cinzas, minh'alma foi se fazendo em pedaços, pedaços que foram ficando para trás, junto à um passado de desventuras que se fundiram com a incerteza do agora.
Quando percebi já estava vazia de mim, desvanecendo do mundo e de tudo. Não havia mais resquícios de vida, só o que havia eram pequenos rastros de melancolia, que outrora se abrigou cá dentro para nunca mais sair.
Eu fui morrendo por dentro a cada madrugada acordada com gritos sufocados, eu fui morrendo por dentro para que nunca mais pudesse sentir.
Eu não quero mais estar aqui, cansei-me desse mundo injusto, das pessoas que só olham para si. Você me entende? Eu não quero ser como elas, não quero ser massa de modelar, não quero estar presa à uma rotina medíocre.
Eu tinha o sonho de viajar o mundo, Mary, de conhecer pessoas e lugares, e que estes fossem diferentes das pessoas que conheci e dos lugares que vivi. A verdade é que eu sempre quis sumir daqui, me refugiar num paraíso só meu, e chega a ser irônico, pois eu sei que você rezará todos os dias para que a minha alma não esteja queimando nas profundezas do inferno.
Você nunca esperou por isso, mas bem lá no fundo você sabia, a culpa é mesmo do medo, o medo que lhe impediu de olhar para dentro de mim.
Não quero esse sentir, Mary, esse nada sentir, não quero esses olhos marejados que se perpetuam num prestes a chorar, não quero essa realidade que me obriga a sobreviver, uma vez que eu esqueci o que é viver.
Não posso com esse vácuo que toma conta de mim, preciso que alguém me tire daqui, me tire de mim.
Ninguém vai apertar o gatilho contra a minha cabeça, senão eu mesma, mas tudo bem Mary, eu hei de desvanecer como a névoa da madrugada ao chegar da aurora.
Só lhe peço que não se esqueça do barulho da água, o barulho que sempre gostamos de ouvir.
Quando o som dum riacho ecoar em teus ouvidos, lembre-se de mim, eu ainda hábito no seu coração.

*

Carta de suicídio fictícia.

DesvanecendoOnde histórias criam vida. Descubra agora