Na dor do amor - Parte 1

145 10 4
                                    

Apertei a ponta dos dedos no metal frio da arma, senti seu peso, totalmente carregada e apontada para o homem a minha frente. Era velho, chorava e implorava pela vida das filhas que ainda dormiam em seus quartos.
Por azar, o homem acordou no meio da noite para beber água e nos encontrou no meio do assalto. Era pra ser algo rápido, planejado. Os três iriam entrar na casa marcada, pegar uma maleta específica e quebrar o andar de baixo. Simples.
Mas houve um aviso: quem for encontrado, deve ser morto.
Eu estava pronto para atirar quando uma das filhas desceu chamando-o.
Big Joe era quem comandava o assalto e não temeu em atirar antes de mim, matando o velho e puxando a garota para se ajoelhar no chão.
- Pai... pai por favor levanta - Ela chorou olhando o corpo ja sem vida do homem a sua frente, o rosto coberto de sangue, um tiro no olho esquerdo.
- Idiota! - Ela gritou e pulou em cima de Big Joe, ignorando o fato dela ter metade do tamanho dele. Ela era idiota, pois foi a próxima a levar o tiro certeiro no peito.
A maleta ja estava na mão de Carl, outro que pertencia a vida do crime desde que nascera. Ele me chamou, mas eu ainda estava em choque. Nunca matei ninguém, era meu primeiro crime, que procurei no desespero de dinheiro, mas nunca me arrependi tão amargamente de algo como estou agora.
Outra mulher desceu e antes de chegar ao fim da escada, Carl atirou já correndo para a porta. Fizemos muito barulho e logo alguém chamaria a polícia.
- Poncho corre - Big Joe me avisou, mas meus pés estavam muito pesados para sair do lugar.
Um garotinho, não tinha nem cinco anos, chegou no pé da escada chamando pelos pais e encarou os corpos no chão.
Deus, eu não poderia matar uma criança. Eu tinha um irmão, tão pequeno quanto esse garoto! Meu desespero foi tanto que quase tirei a máscara e o protegi, mas Carl foi mais rápido e apontou a arma, mas Big Joe o impediu.
- Não matamos crianças, corre pro carro. Vem Poncho!
Eles correram e eu fiquei ali, encarando os três corpos sem vida, o velho de cabelos escuros, a mulher tão loira que parecia quase branco e a garota, cabelos da cor da mãe, morta com os olhos abertos exibindo o quão azuis eram.
- Gio, levanta... - O garotinho sentou-se em frente ao corpo, ainda não entendendo o significado da morte.
- Gio tem um homem estranho aqui em casa. Estou com medo Gio, por favor! - Ele chorou.
Eu quebrei. Algo em mim quebrou tão forte que meu chão pareceu ruir.
Abri a boca para falar com ele e ouvi a voz de outra garota que o puxou de perto de mim.
- Eu ja liguei para a Polícia! - Gritou, com a mesma astúcia da primeira, assustadoramente parecida com o corpo no chão. Gêmeas idênticas.
Eu tinha que matar ela, deixar só o garoto, mas eu nao tinha coragem de matar ninguém. Já estávamos com a maleta era isso o mais importante.
Corri da casa com o rosto da garota em minha mente, encontrando com um Big Joe muito puto por minha demora, mas não reclamou, apenas corremos para o abrigo onde rasgamos a maleta e dividimos o dinheiro dela.
O homem possuía negócios de fora e sua família era inimiga do bando de Big Joe, então ter informações era fácil. O homem se chamava Henrique Portilla, todos os cheques levavam o nome dele.
Quando cheguei em casa de madrugada, tomei banho por quase duas horas, como se sentasse tirar a morte de mim.
- Poncho, vai acabar com a água quente - Minha mãe gritou.
- Estou tomando banho frio - Respondi e ouvi o susto que tomou. Eu odiava banho frio, mas era o que precisava na hora.
Ruth, vulgo minha mãe, estava doente e faltava pouco para podermos pagar o tratamento, mas vendemos tudo o que era possível e ainda assim faltou.
Por desespero aceitei um trabalho com Carl e o que recebi hoje consegue pagar o resto do tratamento, contas atrasadas e ainda sobra para o próximo mês, além de poder pagar a escola de Cody, meu irmão de apenas seis anos.
Não era o melhor trabalho definitivamente, mas era isso ou deixaria minha mãe morrer com o câncer. Por sorte descobrimos precocemente e ela ja havia começado a se tratar, tinha grandes chances de melhoras.
A olhei quando sai do banho, menos pálida do que nos últimos dias e mais alegre. Apesar disso, minha consciencia pesou quando lembrei do rosto das gêmeas e o garotinho. Deitei me sentindo o pior dos homens, enquanto zelei pelo sono do meu irmãozinho dormindo na cama ao lado da minha.
Big Joe me chamou na manhã seguinte para outro trabalho, mas depois do que passei, eu não conseguia mais sair de casa, não sabia como poderia viver com o horror de ver alguém morrer por sua culpa.
Os dias passaram e eu continuei fechado, só saia para levar minha mãe ao médico e voltava. Ela ja estava preocupada com minha repentina mudança, mas eu ignorava suas perguntas.
Os dias logo se tornaram meses e Big Joe já havia desistido de mim, minha mãe já apresentava melhoras e tudo o que eu sabia fazer era estudar. Ruth resolveu me cobrar os estudos para crescer na vida, pois não queria que eu passasse necessidades como ela passou, então me dediquei fortemente e cursei direito.
Minha formatura foi no mesmo dia que o médico avisou que minha mãe não tinha mais câncer.

Apesar do meu erro terrível aos 17 anos, agora aos 27 tudo estava dando certo. Consegui um bom emprego logo depois de pegar meu diploma, dava um bom salário e consegui até mesmo me mudar para uma casa mais confortável com minha mãe e irmão.
Dona Ruth também resolveu fazer cursos de pintura durante o câncer e agora conseguia vender alguns de seus quadros por quantias admiráveis, sem precisar depender de mim para nada, enquanto Cody estava terminando o ensino médio.
Eu nunca tive coragem de contar a eles o que fiz para pagar o tratamento, também não conseguia gostar de mulheres loiras, muito menos as com olhos claros, independente do cabelo. A visão da garota estendida no chão, morta com aquela imensidão azul amostra, e logo depois sua cópia fiel aparecer viva, havia me traumatizado até a alma. Eu me culpava a cada segundo da minha vida pelo que aconteceu a familia, e me perguntava tudo o que podia ter acontecido com eles.
Eu estava em minha sala, mais uma vez imaginando como estaria a vida da gêmea e o irmão mais novo, quando Cody me ligou.
- Alfonso, posso levar um amigo pra dormir em casa hoje? - Ele pediu. Minha mãe estava viajando com as amigas então era eu quem teria que cuidar do meu irmão.
- Está bem, só não faça muita bagunça, eu preciso trabalhar em casa hoje.
- Ok, vou cuidar da janta hoje.

Quando cheguei em casa naquela noite, Cody e o amigo estavam sentados na mesa da sala de jantar, meu irmão com o notebook dele e o rapaz com seus cadernos explicando uma matéria para ele.
Os cumprimentei, sentindo um arrepio quando o garoto me olhou com aquelas enormes iris gélidas. Isso sempre acontecia quando me encontrava com alguém e olhos claros.
- Alfonso, esse é o Josh, está na minha turma - Cody nos apresentou.
- Olá Josh, sou Alfonso, é um prazer - Cumprimentei o garoto, jovem, olhos muito azuis e cabelos loiríssimos.
- Olá Alfonso. Obrigado por me receber hoje.
Eu sorri em cumprimento e quando ia saindo, o garoto me chamou mais uma vez.
- Desculpe incomodar, é que minha irmã não gosta de me deixar dormir fora sem falar com os responsáveis antes - Ele corou envergonhado com o celular na mão.
- Não se preocupe, eu falo com ela sem problemas.
O tranquilizei e ele ligou para a irmã, que logo atendeu e passou para mim.
- Olá é o Alfonso? - A voz dela surgiu. Era doce, quase melódica.
- Sim sou eu, irmão mais velho do Cody.
- Oi, sou Anahi, irmã do Josh, ele me disse que seu irmão o chamou pra dormir ai, mas eu queria ter certeza de que está tudo bem.
- Sim, não precisa se preocupar, aliás eu agradeço, pois parece que ele esta ajudando meu irmão.
- Ah ótimo! Obrigada!
Me despedi educadamente da garota e devolvi o celular, percebendo o quão simples era.
Josh era um garoto educado, quieto e inteligente. Se não estivesse explicando a matéria, não abria a boca para mais nada, enquanto meu irmão facilmente se distraia com um lápis ou uma mosca.
Decidi que os deixaria estudando e fui dormir avisando que no dia seguinte eu os levaria para a escola.
Josh estava pontualmente pronto no horário combinado e Cody ainda se arrumava, então tive tempo para conversar com o garoto.
Ele não era apenas super disciplinado, mas também muito inteligente e apegado a irmã, falava pouco ou quase nada do resto da família, mas não o incomodei com isso.
Os deixei na escola, fui trabalhar. Naquela tarde eu tinha decidido procurar sobre a família Portilla. O sobrenome ecoava em todos os cantos da minha cabeça nos últimos dez anos, nunca havia me esquecido de como se pronunciava, apesar do terror que sentia quando eu pensava em pesquisar sobre eles, imaginando se me encontrariam ou se eu descobriria o quanto havia arruinado suas vidas, mas hoje a curiosidade foi maior do que o medo.
Ao pesquisar, encontrei as notícias do dia do ocorrido, ocultando-se os nomes, mas com uma foto da família tomando quase metade da página do jornal. O pai estava numa cadeira vermelha na frente, a esposa estava logo atrás, extremamente bonita, duas cópias dela mais jovem estavam à direita do pai, as gêmeas idênticas sorriam levemente, enquanto o irmãozinho estava ao lado esquerdo do pai, sorrindo abertamente.
Era uma família linda e não havia como negar, todos tinham bons genes e o jornal dizia apenas maravilhas sobre todos os Portillas, o que apenas me culpou mais.
Talvez eu não devesse ter procurado nada.
Passei o resto da tarde com a imagem da família na cabeça, sem coragem de pesquisar mais a fundo.
Quando estava indo buscar Cody, recebi sua ligação, perguntando se Josh poderia mais uma vez ajudá-lo com a matéria em casa, mas sem dormir pois sua irmã iria buscá-lo mais tarde.
Não me imcomodei, pois o garoto ensinava muito bem e eu sentia que era uma ótima influência para meu irmão.
Anahi apareceu perto das sete da noite para buscar Josh, que novamente estava totalmente pronto na hora marcada com a irmã. Tanta disciplinaridade me faz pensar que ele não tem um bom relacionamento com os pais.
Preocupado com ele, eu estava disposto a conversar com Anahi para tentar ajudar de alguma forma, até que ela finalmente chegou.
E, inferno! Era loiríssima, olhos gelidos como os do irmão, extremamente azuis. Ela era toda a personificação do terror que me atormentava nos últimos anos.
Ela não mudou nada.... Meu consciente gritava.
Era a outra gêmea. Ela estava ali, na minha frente, viva e não sabendo que eu havia matado sua cara metade.

OneShots - AyA Onde histórias criam vida. Descubra agora