Pé ante pé, eu me esgueirei entre escombros, poeira e um cheiro característico de madeira antiga. Resolvi colocar a cabeça para fora aos poucos, após me encostar em uma parede e pude constatar que a lareira do cômodo ao lado estava acesa. Ali, diante do fogo, vi a silhueta de uma jovem que estava diante de um livro, parecendo concentrada e com uma lanterna ao seu lado. Não deveria ter mais de 20 anos e suas vestes pareciam de segunda mão.
De repente, como se sentisse que havia mais uma presença na casa, ela apontou bruscamente sua lanterna para mim e perguntou de forma assustada, porém tentando manter uma voz controlada:
- Amigo ou inimigo? Desembucha!
- Eu.... Eu sou amigo. Por favor, pare com isso. - Eu instintivamente coloquei as duas mãos diante do meu rosto para me proteger da enorme claridade. - Por favor, abaixe essa lanterna, foi um mal entendido, eu não vou machucar você.
- Ela me olhou por alguns segundos e finalmente abaixou a lanterna.
- Achei que fosse um dos caras maus do St. Patrick. É difícil encontrar algum lugar para ler em paz. - Ela voltou a se sentar, repousando a lanterna ao seu lado.
Estudei seus traços com atenção e pude ver como ela era bonita: seus cabelos eram longos e castanhos, sedosos como a crina de um cavalo puro sangue, pele rosada, olhos verdes e lábios naturalmente avermelhados e bem delineados. Uma estranha sensação se apoderou de mim ao olhar aqueles lábios.
- O que está fazendo aqui? Você também mora lá?
- Perdão, mas eu não sei do que você está falando. - Dei de ombros.
- O orfanato. - Ela suspirou, como se dizer aquela palavra fosse doloroso para ela.
Eu rapidamente entendi a situação. Ela era uma jovem órfã que procurava apenas um pouco de paz em um lugar relativamente perigoso. Não pude deixar de sorrir em meio a esses pensamentos. Ela parecia comigo em minha juventude mortal.
- O que foi? - Ela ergueu uma das sobrancelhas para mim.
- Nada, apenas um pensamento que me veio a cabeça. Eu posso me sentar do seu lado?
Ela deu de ombros e apontou para um travesseiro esfarrapado que havia diante dela. Sentei-me e, tomado pela curiosidade, não pude deixar de perguntar:
- O que você está fazendo sozinha aqui? Este lugar está a ponto de desabar.
- Se esse lugar é tão perigoso o que você está fazendo aqui também? Ah qual é, se esse lugar fosse mesmo cair, teria caído a muito tempo.
- Você tem razão. Nenhum de nós deveria estar aqui. É que eu achei que eu fosse encontrar... Alguém. - Não me atrevi a dizer seu nome por algum motivo que não sei explicar.
- Namorada? - Ela deu um sorriso interessado.
- Não. - Eu sorri. - Um velho amigo, se é que podemos dizer isso.
Após alguns segundos, pude perceber um fato curioso: essa jovem não demonstrou ter qualquer medo da minha aparência. Sempre quando eu estou diante de qualquer fonte de luz, meus traços vampirescos ficam ainda mais aparentes e visíveis, mas essa jovem parecia não ter percebido nada, e se percebeu fingiu não notar, por algum motivo.
- Você não está com medo de mim? - Perguntei cautelosamente.
- Porque eu teria? Você é alguma criatura mística? - Ela deu uma risada baixa, que acabou por derreter meu coração gelado.
- Digamos que eu não sou uma companhia muito desejada. - Eu retribui o sorriso.
- Sério? Ela se aconchegou para mais perto de mim, deixando seu livro de lado. -Você é um cara bem bonito.
Ela abaixou a cabeça, parecendo envergonhada com suas próprias palavras. Meu faro apurado permitiu-me captar seu doce perfume, algo que lembrava uma fusão de baunilha, lavanda e rosas vermelhas. Fazia um século que eu não sentia um aroma tão irresistível em uma mulher. Que sentimento estranho era esse que invadia meu peito e que me fazia vontade de estar em sua companhia por horas, nem que seja para apenas ouvi-la falar?
- Se quiser posso acompanhar você até sua casa. Está bem tarde e ouvi dizer que os assaltos de madrugada estão ficando frequentes nesta região.
- Obrigada. Acho que vou aceitar.
Descemos as escadas e fomos caminhando em silêncio pela rua; ela apertando seu livro contra o peito, eu com minhas duas mãos nos bolsos.
Dei uma olhada rápida para o livro e vi que o título era: "Criaturas da Noite: mito ou realidade?"
- Gosta de ler sobre criaturas sobrenaturais?- Comentei de forma amigável.
- Sim, eu gosto de passar o tempo lendo e investigando sobre esses seres. Todos dizem que eu sou louca por acreditar nessas coisas. Mas eu sempre achei que existe muito mais coisa além do que a vista pode alcançar. Deve ser por isso que eu não tenho amigos. - Ela baixou a cabeça, olhando para os próprios passos. Segurei em sua mão por instinto.
- Eu acredito em você. - Disse com bondade. Ela sorriu para mim.
Após alguns minutos de caminhada chegamos diante de um grande orfanato, cuja arquitetura parecia bem antiga e pude ler na porta uma placa dourada com os seguintes dizeres: "Orfanato para crianças e jovens St Patrick - Fundado em 1895. Para atendimento, toque a campainha"
- Bem, chegamos. Obrigada pela companhia. Você parece ser legal. A gente se esbarra por lá de novo, pra conversamos um pouco mais.
- Eu adoraria mas acho que não disse seu nome.
- Morgana. -Ela estendeu a mão para mim, porém eu a tomei e depositei um beijo em sua mão pequena e quente.
- Louis. Enchanté.
- Fofo. Até qualquer dia. - Ela sorriu, e tirando uma pequena chave do bolso, destrancou a porta e entrou.
Caminhei em direção às minha casa de forma despreocupada, com o seu sorriso e eu seu cheiro em minha mente. Aquele sentimento forte continuou me acompanhando por todo o tempo, um sentimento que eu conhecia mas que eu jamais poderia imaginar que eu voltaria a sentir depois de mais de duzentos anos.
"Que droga, Louis" , pensei comigo mesmo, "será possível que você se apaixonou?"
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Pesadelo e Luxúria - Mais crônicas vampirescas
VampiroMais de vinte anos se passaram após Louis ter avistado Lestat, após dar sua entrevista, que ficou conhecida por todo mundo e levada a sério por quase ninguém. Seguindo uma vida solitária, Louis se sente cada vez mais sozinho e melancólico, por achar...