Já a algumas quadras depois da escola, a chuva era fina como sempre, e eu, embrulhado no meu moletom negro sem estampa e sem marca, peguei um atalho que levaria a duas quadras da minha casa. Olhei para o céu e pude ver um pequeno raio de sol sair por de trás das nuvens do horizonte.
"Será que hoje vai ser um dia diferente? Talvez melhor, quem sabe?!" pensei comigo mesmo.
"Ne, Ikki-deme" ouvi o repetente valentão da minha turma cortando meus pensamentos.
Pelo visto, seria só mais um dia normal. Os raios de sol sumiram.
"Nani, Choki?" serrei meus punhos e me virei vendo o grupo de cinco marmanjos que logo me cercaram, como todos os dias.
"Ta na hora do Punch!" ele sempre fala isso estralando os dedos. Ele deve se achar mestre do inglês por ter aprendido essa palavra.
"Ah, vamos acabar logo com isso!" coloquei a bolsa no chão molhado e me preparei para a surra.
Acho que eles estão ficando entediados. A primeira surra durou quase vinte minutos. Mas de lá para cá diminuiu cada vez mais. Essa durou dezesseis minutos e trinta e três segundos. Dessa vez não havia trocados na minha bolsa nem nada de valor, então, rasgaram meu livro favorito e jogaram na poça de água e cuspiram em mim. Fechei os olhos e ouvi suas risadas se afastando até sumirem.
Alguns minutos deitado no chão, e a chuva não parava de cair sobre mim. Me sentei, olhei ao redor procurando minhas coisas espalhadas ao chão. Retirei meu casaco rasgado e coloquei numa lixeira qualquer que havia próximo de onde me deixaram largado, fiz o mesmo com meu livro, levei minha bolsa de arrasto até em casa.
Ninguém estaria me esperando, então simplesmente entrei e soltei minha bolsa no chão, fui me despindo aos poucos a caminho do banheiro, até entrar no chuveiro.
A água quente caía e escorria pelo meu corpo até a tremedeira passar e a sujeira mais grossa sair de mim. Entrei na banheira cheia e deitei nela. Fechei meus olhos e submergi na água morna. Fiquei ali até perder completamente o oxigênio. Me levantei e senti a minha cabeça pesar de dor e vi o banheiro girar pela falta de oxigênio no cérebro. Me segurei na banheira, fechei os olhos e respirei fundo, esperei alguns segundos e os abri novamente. Levantei da banheira, terminei meu banho e fui preparar algo para comer. Coloquei a água para ferver enquanto procurava um daqueles macarrãos instantâneos para tentar matar a fome."É o último macarrão instantâneo! Hm, tenho que fazer compras." Peguei o copo de macarrão e coloquei na pia "Talvez eu vá no fim de semana." coloquei água na chaleirá, liguei a chama do fogão e fui desenhar esperando a água ferver.
Vasculhei minha pasta de desenhos sombrios procurando uma folha em branco."É a última folha!" respirei fundo "Sou obrigado a fazer compras." comecei a desenhar algo como uma entidade de capuz e rosto pálido. Ouvi o apito da chaleirá indicando que a água estava fervendo. Deixei o desenho e fui comer.
"Itadakimasu." devorei todo o Ramén em minutos e fui terminar o desenho. Três horas depois estava perfeito. "Pelo menos eu sou bom em alguma coisa que não seja apanhar, Hm."Olhei para o relógio e me virei para olhar para fora da janela.
"Quando que parou de chover mesmo?" me perguntei olhando aquela cena, até que estava bonito. O céu escuro com um laranja de fundo, era um belo crepúsculo. Peguei minha câmera e fui para o telhado da minha casa tirar algumas fotos do horizonte laranja. Fiquei lá em cima até a luz ser consumida pela escuridão da noite e bati outras fotos do céu estrelado. Respirei fundo de olhos fechados e senti o ar gelado.
"Acho que tenho tempo de um treino rápido!" falei baixo. "Só vou ter que tomar banho de novo. Mas tudo bem, nessa casa ninguém gasta muita água mesmo! Sou só eu." Desci do telhado e fui para um quarto reservado no porão. Lá havia algumas espadas de madeira, alguns sacos de areia, uns bonecos de madeira, objetos de peso como de uma acadêmia e um tatamê. Tirei minha camisa e coloquei numa cadeira, alonguei um pouquinho, levantei pouco de peso, enrolei uma faixa em cada mão. Me aproximei do boneco de madeira, me posicionei e comecei a golpeá-lo.
"Errado!" a voz firme da minha mãe soou na minha cabeça. Parei na mesma posição que estava, fechei os olhos e respirei fundo.
"Você não está mais aqui e continuei!" falei comigo mesmo e segui golpeando o boneco.
"Firma esse braço!" a voz continuou na minha cabeça. Parei de novo. Respirei e continuei, tentando não lembrar da época que ela estava aqui e me ensinava. "Velocidade nessas pernas!" mais um flash do passado e eu comecei a me irritar e bater com mais força e mais rápido, já não era um treinamento, era "...Um desconto do ódio que você sente!" essas lembranças me faziam perder o controle e comecei a socar e chutar aquele boneco de qualquer jeito, jeito que começou a machucar minha mão.
"Ikki, está errado!"
"Okka-chan..." eu parei ofegante.
"Aqui eu sou sua sensei, não sua mãe! Ajeita essa base."
"Gomen, sensei!" eu apenas continuava golpeando mas minha base sempre estava errada, mesmo eu corrigindo, tornava a errar.
"Hoje, vamos praticar o combate corpo-a-corpo!" nós estávamos parados no tatamê, nos cumprimentamos e em menos de dez segundos já me encontrava no chão imobilizado.
Numa luta ou num treinamento eu nunca tirei um sorriso dela. A mesma cena se repetiu por dois anos.
"O boneco novo é de eucalipto. Aquele estava meio gasto. Venha aqui e me mostre oque você consegue fazer depois de dois anos com aquele velho boneco. Comece!" me posicionei, respirei fundo e comecei a golpear o boneco, sem ódio, sem erros. Assumindo todo o jeito marcial que adquiri naquele tempo. Não ouvi suas correções, estava simplesmente acertando cada movimento e em uns três minutos eu quebrei a cabeça do boneco e parei respirando ofegante."Muito bom. Parabéns, Ikki!" olhei para ela e vi o belo sorriso, que não vinha apenas de uma treinadora rígida, mas de uma mãe.
Naquele dia eu não apenas tirei um sorriso dela como recebi um elogio. A felicidade tomou conta do meu corpo e eu sorri para ela que apenas se virou e subiu as escadas. Pude ouvi-la dizer:
"Panquecas para o jantar, o que acha!" meu sorriso aumentou e eu fui ao encontro dela.
"Acho uma boa ideia, Sensei!" abracei ela e ela beijou minha testa. Ouvi ela sussurrar:
"Meu filho cresceu!" senti seu abraço me apertar. Eu nunca dormi tão bem como nesse dia.
Acordei daquele flash back e quando percebi, o boneco no qual eu treinava estava completamente quebrado, minhas mãos latejavam por ter golpeado de maneira incorreta antes. Havia sangue e pedaços de madeira fincados na minha mão após perfurar as faixas. Observei bem o boneco caído com um braço para cada lado e a cabeça caída no outro canto do quarto, olhei para o lado onde minha mãe sempre ficava e na minha mente se desenhou o seu sorriso mas ela não estava lá. Caí de joelhos e comecei a chorar.
"Okka-chan... Okka-chan... Por quê?" solucei como uma criança e me encolhi chorando alto. Até que eu dormi naquele chão junto dos pedaços daquele boneco.
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Solidão! (Concluída)
RandomVolume 1- Ikki, um garoto jovem, magro, quieto. Com problemas em casa e na escola, o garoto não vê outra solução se não se fechar do mundo e usar roupas largas para esconder as marcas em seu corpo. Sem coragem para tirar a própria vida, ele vive po...