20 - Sam

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_ Aqui estão sublinhadas suas falas. _ Stella entregou-me o fichário com as folhas do script para eu memorizar.
Tomei o suco de laranja tranqüilamente, sentado à cozinha. Não estava com vontade de olhar aquilo agora.
O interfone tocou e ela apertou o botão para atender.
_Pode mandar entrar e esperar na sala. _ autorizou e colocou o fone
no gancho. Voltou sua atenção para o notebook aberto à sua frente. _ Marquei sua visitação ao monsteiro. Será um ótimo lugar para você começar o laboratório. É importante montar o personag...
_Quem era?
_Ãnh?
_Quem era no portão? _ perguntei.
_Ah! Aquela jornalista. Mas ela pode esperar.
_Cait? _ levantei-me, prontamente.
_Hei! Aonde você vai?
_Eu vou falar com ela e já volto. Aproveita para olhar o meu e-mail e fazer aí o que tem pendente... _ aconselhei-lhe.
_Mas...
Caminhei pelo corredor e vi Cait de costas, olhando através da porta
de vidro da sala. Parecia concentrada em algum ponto do jardim.
_Pensou bem rápido. _ comentei e ela virou-se.
_É. _ sorriu sem muita motivação.
Vestia a mesma roupa de quando a encontrei pela primeira vez,
uma calça preta e blusa branca de babadinhos na frente. Uma postura sempre distante, que colocava uma barreira entre nós. Pensei em estender- lhe a mão, mas não senti que ela queria contato.
_Eu vim aqui...
_Sente-se. _ pedi.
_Eu cheguei a uma conclusão.
_E qual é?
_Vamos fazer...

_Ótimo. _ eu falei alto, feliz por sua aceitação, mas Cait não me
pareceu da mesma forma exultante. _ Espero que goste do trabalho, não
quero que seja nenhum suplício para você.
_Quanto a isso, é uma questão minha. Espero fazer o meu trabalho e você me pagar por ele. Será só um contrato.
_Um contrato. _ repeti em voz baixa, eu não conseguia enxergar do mesmo modo. _ E quais as cláusulas desse contrato?
_Bom, o meu nome vai estar nisso, então, eu quero ter poder de
interferência.
_Como seria isso?
_Eu imaginei que podemos gravar tudo no celular. Depois, eu vou
ouvir e digitar conforme eu acho que ficaria coerente e instigante. Não, necessariamente, na ordem cronológica que você contar.
_Ah! Quanto a isso, te dou a liberdade poética. _ ri, aliviado por
entender que era algo mais simples. _Eu também terei minhas interferências.
_Quais?
_Eu vou falar tudo que vier a cabeça e depois posso acabar cortando
alguns trechos.
_Com ajuda da sua censora?
_Quê?
_Acho que não vai ter como tirar a sua assessora do processo.
_Ãnh... _ eu pensei por um momento, não tinha refletido bem sobre isso. Não queria que Stella se metesse no livro com seu dedo acusador. _... Bom, posso até mostrar a ela, mas inicialmente minha idéia não contava com a participação dela.
_Por quê? Me parece estranho que...
_Você não ficaria à vontade. _ disse-lhe.
_Eu ou você? _ ela levantou as sobrancelhas.
_Nós. _ admiti.
_Com toda certeza. _ ela riu e abaixou a cabeça, pareceu-me menos imparcial, pela primeira vez.
_ Posso fazer uma pergunta? _ ela pediu.
_Acho que é o que mais fará nos próximos meses.
_Esse livro é para apagar o que eu escrevi?
_Pode ver dessa forma, mas, é também para mostrar o que
ninguém mostrou.
_Mostrar para quem? _ quis saber.
_Para todos.
_Todos? Todos mesmo?
_Para os fãs e...
_Para você e sua família? _ completou.
_Serão sempre inquietantes assim as suas perguntas?
_Foi você quem me escolheu. _ ficou na defensiva.
_Uau, me sentirei no paredão. _ ri.
_A fonte tem o direito de não querer responder. _lembrou-me.
_A fonte. _ repeti. _ Será que podemos ser mais próximos? Eu sinto que você está de um lado da ponte e eu de outro, nos falando por aquelas latinhas ligadas por um cordão de barbante. _ ri.

_Não vejo como. Eu não estou aqui para julgar, eu só vou escrever.
_Se você não colocar sentimento no que fizer, não sei como vamos
conduzir o projeto.
_O que eu faço é jornalismo e jornalismo não é sentimento.
_Jornalismo é verdade e não acredito que a verdade precise ser
assentimental. _ falei-lhe.
Cait levantou-se e pôs uma das mãos na cintura, me pareceu tomar fôlego. O seu incômodo estava começando a me deixar inquieto. Eu não queria torturá-la.
_Sam, eu faço o que quer. _ ela virou-se inesperadamente. _ Eu
vendo a minha alma ao diabo, se for preciso...
“Vender a alma ao diabo?” Uau! Que horror!
_... Mas, eu preciso te pedir uma coisa que eu não queria, que eu
até tenho vergonha de pedir, que...
_Pede logo!
_Eu preciso de um adiantamento.
_Ah... _ soltei o ar dos pulmões aliviado. Era isso?!
_É que eu tenho umas contas para pagar que não posso mais adiar.
Eu nem acredito que estou tendo que pedir isso, mas...
_Tudo bem, isso não é problema.
_Desculpe... Eu não queria mesmo...
_Cait. _ levantei-me e me aproximei. _ Isso é o de menos.
_ Tá. _ ela sorriu e aquele era o primeiro sorriso verdadeiro que
dera.

(...)

Ela me olhou com ar de urgência e mulheres com pressa não
permitem a poesia da película, vira tudo um clipe entre cortado, movimentos bruscos. Não é arte, é produto. Eu não queria um livro, eu queria uma obra!
_Não consigo. _ ri, constrangido. Tentei me ajeitar na cadeira, talvez
fosse a posição. _ Eu fico travado.
_Quer chamar sua assessora? _ perguntou, friamente.
Revirei os olhos
_ Não Cait, não quero... Não é isso.
não quero me sentir espremido contra a parede!
_Desculpe, mas acho que não fiz nada.
_Não, justamente. Esse jeito de esperar alguma coisa de mim trava tudo.
_Jeito? _ ela repetiu.
_Não e uma matéria de jornal!
_Eu sei que não é.
_Mas está fazendo parecer! _ reclamei.
_Desculpe, talvez eu não seja boa... _ ela levantou-se e foi até a
varanda tomar um ar.
_Não é isso. _ falei atrás dela. _ Eu queria que se soltasse mais.
_O livro é sobre mim ou você?
_É sobre mim, mas depende de você.
_Hum. Vamos tentar outra vez. _ passou à minha frente e sentou-se
no sofá. Antes, desligou o celular e abriu o bloco de anotações. _ É melhor eu só tomar nota.
Sem ser brusco, puxei o caderno de sua mão.
_Só olhe para mim.
Ela hesitou, mas me encarou fixamente.
_Eu sei o que você quer.
_O quê? _ perguntei.
_Não é um livro, é atenção.
_E se for?
_Está alugando uma amiga? _ franziu a testa.
_Você consegue colocar as coisas em uma posição sempre diferente
da que eu imagino.
_Esse livro não é um foco, é um meio.
Não a contradisse, senti que não tinha terminado.
_Não é um objetivo, é uma desculpa. Então, por que eu?
_Porque só você perceberia isso. _ respondi. _Viu? Acho que já foi
um bom começo. _ observei.
Ela sorriu.
_Isso é uma conversa! _ falei-lhe.
_Eu não estou muito acostumada a interagir assim, porque minha
opinião não vale tanto, eu tenho que ouvir a fonte.
_Eu não sou uma fonte, mesmo sendo ainda seu interlocutor. _
resmunguei.
_Prometo tentar me adaptar.
_Vamos almoçar?
_Você e eu?
_É. Estritamente profissional!
_Ok.
Ela sentou-se à mesa da cozinha comigo e minha empregada nos
serviu.
_Não me parece nada profissional.
_Você está escrevendo um livro que é pago, eu sou o personagem
principal, portanto, isso aqui é profissional. _ tentei levá-la por esse raciocínio.
Stella apareceu, perguntando se íamos demorar. Eu disse que
poderia levar toda a tarde.
_Olha as falas, hen?
_Vou memorizá-las. _ garanti-lhe e nos deixou à sós.
_Como agüenta? _ Cait perguntou.
_Isso será parte do livro?
_Você disse que ia censurar mesmo... _ ela riu.
_Eu não agüento. _ mordi a batata frita.
Rimos juntos.

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