Um novo lar.

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CREPÚSCULO EM NEW YORK

Rio de Janeiro , 1954

Com um gesto fulgurante o Arcanjo Gabriel
Abre de par em par o pórtico do poente
Sobre New York. A gigantesca espada de ouro
A faiscar simetria, ei-lo que monta guarda
A Heavens, Incorporations. Do crepúsculo
Baixam serenamente as pontes levadiças
De U.S.A. Sun até a ilha da Manhattan.
Agora é tudo anúncio, irradiação, promessa
Da Divina Presença. No imo da matéria
Os átomos aquietam-se e cria-se o vazio
Em cada coração de bicho, coisa e gente.

E o silêncio se deixa assim, profundamente...

Mas súbito sobe do abismo um som crestado
De saxofone, e logo a atroz polifonia
De cordas e metais, síncopas, arreganhos
De jazz negro, vindos de Fifty Second Street.
New York acorda para a noite. Oito milhões
De solitários se dissolvem pelas ruas
Sem manhã. New York entrega-se.
  Do páramo Balizas celestiais põem-se a brotar, vibrantes
À frente da parada, enquanto anjos em nylon
As asas de alumínio, as coxas palpitantes
Fluem langues da Grande Porta diamantina.

Cai o câmbio da tarde. O Sublime Arquiteto
Satisfeito, do céu admira sua obra.
A maquete genial reflete em cada vidro
O olho meigo de Deus a dardejar ternuras.
Como é bela New York!
Aço e concreto armado
A erguer sempre mais alto eternas estruturas!
Deus sorri complacente. New York é muito bela!
Apesar do East Side, e da mancha amarela
De China Town, e da mancha escura do Harlem
New York é muito bela! As primeiras estrelas Afinam na amplidão cantilenas singelas...
Mas Deus, que mudou muito, desde que enriqueceu
Liga a chave que acende a Broadway e apaga o céu
Pois às constelações que no espaço esparziu
Prefere hoje os ersätze sobre La Guardia Field.

Vinícius de Moraes

Faltavam poucas horas para o vôo de Tulipa partir. Céris exigiu que na noite anterior fosse realizado um jantar de despedida, onde ela anunciou aos amigos mais próximos e alguns familiares que sua filha estava partindo para Nova York e que seu filho começaria a trabalhar em seu escritório de advocacia, tudo isso para receber elogios e talvez não gerar burburinho entre os tais sobre a razão de mudanças tão drásticas estarem acontecendo tão repentinamente naquela casa.
Aos amigos Céris justificou a viagem de Tulipa dizendo que se tratava de uma oportunidade de praticar o inglês e conhecer uma nova cultura, nem sequer comentou sobre a emancipação. E aos familiares ela disse que á tempo Tulipa ansiava por conviver mais com a família do pai, e que agora generosamente tinha cedido a esta vontade da filha.
Pelos cantos Tulipa roía-se de raiva ao ouvir as desculpas esfarrapadas da mãe.
"Vaca hipócrita". Ela sussurrava.
Quanto a Ângelo os comentários eram os melhores: " Foi a melhor decisão que você poderia ter tomado, Céris! Esse garoto será seu sucessor". "Vejo nele sua garra". "Logo se via que seguiria seus passos e não os do pai".
E a resposta de Ângelo para todos estes comentários era o mesmo sorriso falso e frio que aprendeu desde criança a dar em situações como aquela.
- Já sabe como vai se sustentar, querida?- A avó cutucou Tulipa.
- Ouvi dizer que tráfico sexual é uma atividade muito rentável, estou estudando propostas...
Tulipa deu as costas á ela e aos demais convidados e foi beber seu coquetel de morango perto da piscina.
Um misto de tristeza e alívio percorria sua mente nos últimos dias, desde o anúncio de sua mãe.
Ao mesmo tempo que sentia-se despedaçada por deixar Ângelo, sentia que enfim poderia ser ela mesma, longe das algemas morais da mãe e das lembranças de seus pai.
O que encontraria em Nova York ela ainda não sabia, só esperava que aquilo tudo fosse realmente uma mudança para melhor.
Distraída com seus pensamentos nem percebeu quando Heitor se aproximou dela, por isso assustou-se quando o ouviu dizer: - Desculpa...
Virou-se instantaneamente e o viu ali parado ao seu lado com uma expressão triste no rosto.
- Te desculpar pelo o que?
- Por não ter evitado tudo isso.
- A festa?- Tulipa apontou para casa.
- Não. Sua mudança....tudo isso que Céris fez...eu... Poderia ter evitado isso...- Heitor parecia desconcertado.
- Hunf... Como? Ninguém pode com ela!
- Eu deveria ter apoiado vocês desde o início ao invés de fingir que não estava percebendo o que acontecia entre vocês dois.
- Não é culpa sua.
Os dois se olharam em silêncio por alguns segundos, e em muitos anos aquela foi a primeira vez em que Tulipa sentiu vontade de abraçar Heitor e agradecer a ele tudo o tinha feito por ela. Todo o amor, todo o suporte que ele deu a ela, mesmo quando ela deixava claro que nunca o amaria da mesma forma.
Infelizmente o orgulho falou mais alto e ela não o abraçou. Percebendo que não havia mais nada que ele pudesse dizer ou fazer, Heitor deu um sorrisinho torto para Tulipa e voltou para a festa. Ele sabia muito bem que Tulipa era intransigente, e mesmo que estivesse sofrendo jamais demonstraria pra ninguém, muito menos para ele.

Tulipa 🌷 Parte I Onde histórias criam vida. Descubra agora