" Você a ouviu?"

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- Eu dei tudo á ela! TUDO!
A terapeuta franziu a testa, surpresa com a ênfase que Ceris insistiu em dar a palavra "TUDO".
- Sim. A palavra é exatamente essa: TUDO.
Dei a Tulipa tudo o que pude e mais. Coisas com as quais só pude sonhar durante a minha infância.
- Tudo e nada são palavras tão extremas que prefiro não usar assim com tanta facilidade .
O que te faz ter tanta certeza que, com seus sacrifícios e esforços, foi assim tão capaz de suprir por completo as necessidades de Tulipa?
- Ora, talvez o fato de eu ser a MÃE dela!
- Ah, Ceris...- a doutora riu e bebericou um pouco de água. - Se apenas isso bastasse para que uma pessoa compreendesse ou a torna-se capaz de preencher os mais diversos vazios existenciais de cada um, eu seria uma mulher desempregada.
Infelizmente o posto de mãe não nos faz especiais á este ponto.
- Mas o que mais alguém poderia querer além do que eu ofereci a ela?
Uma boa casa, uma família...boas escolas, as melhores roupas... dinheiro, conforto!
Que outra menina de dezenove anos que você conheça tem a oportunidade de estar morando em seu próprio apartamento em Nova York com uma boa quantia em dinheiro na conta.
- Não muitas, eu admito...
- Então, doutora, por que não acha que estou certa em afirmar que dei TUDO a Tulipa?
- Por que todas essas coisas que você está me citando são apenas seus desejos de menina projetados sob sua filha. Eu só posso saber o que Tulipa sente quando ouvir da boca dela.
Você fez isso, Céris? Você a ouviu?

Aquela pergunta não foi respondida, nem naquela sessão ou em qualquer outro momento.
"Você a ouviu?"

"Fiz muito mais do que isso!". Ela se pegava sussurrando.
Um casamento falido e destrutivo. Depois disso mais quatro longos anos aguentando as piadinhas e os mal feitos de Bruno, foi o período em que ela continuou trabalhando para ele até conseguir ter seu próprio escritório de advocacia.
Heitor a ajudou muito, mas houve coisas nesta época que Céris nunca contou a ele. Como a vez em que Bruno a interrompeu no meio de uma reunião de equipe para dizer que Céris estava com uma mancha de leite na blusa. "Cale a boca, e vá para casa amamentar minha filha." Ela ainda podia ouvi-lo e lembrava perfeitamente do sorriso sórdido que ele tinha naquele momento.
Céris saiu da sala sem dizer uma só palavra, mas assim que entrou no carro chorou e gritou a plenos pulmões.
Foi imediatamente a sua médica e exigiu que ela lhe prescrevesse um remédio que secasse aquele maldito leite.
Chegou em casa, queimou a blusa na pia do banheiro e nunca contou a ninguém sobre aquilo.

Ela lutou tanto para manter Tulipa longe de Bruno. Nunca usou um centavo sequer da pensão que ele apenas por medo de uma má reputação pagava á ela.
Céris guardou todo o dinheiro, e assim que abriu seu escritório fez questão de arrancar de Bruno mais uma boa quantia para filha, além do apartamento em Nova York.
"O que mais ela poderia querer?"
Heitor foi um pai maravilhoso.
Teve a companhia de Ângelo, e eles tinham Naná ao lado deles enquanto cresciam.
Céris lembrava da própria infância, cercada pela pobreza e pela estupidez.
Só tinha lembranças da mãe cozinhando, limpando ou costurando para fazer algum dinheiro.
Lembrava muito bem do dia que prometeu a si mesma que não acabaria como a mãe. Jurou que ia estudar muito, e trabalhar, para nunca ter de viver daquele jeito.
E olha onde estava agora...
Em uma clínica psiquiátrica, muito chique era verdade, mas ainda assim uma clínica.
Agora uma semana depois daquela estúpida sessão com a doutora Lívia, Céris se viu sentada aos pés de uma cama queen size perfeitamente arrumada, em um quarto enorme, mas completamente sozinha.
Poucas horas atrás tinha discutido com Ângelo, e depois com Heitor.
"O que eu me tornei?"
Olhou para janela e viu a noite se aproximando, e o sentimento de desalento e solidão destrancaram lágrimas que ela nem sabia que existiam.
"Você a ouviu?"
Aquela pergunta não se aplicava apenas a Tulipa, mas a cada pessoa que passou pela vida de Céris, incluindo aquela mãe que um dia ela abandonou.
"Você a ouviu?"
"NÃO...EU NUNCA OUVI A NINGUÉM."
De repente tudo que Céris conseguia ouvir era o maldito rangido da velha máquina de costura de sua mãe.
Ela tampou os ouvidos e começou a gritar, tentando afastar o som.
Nada adiantou.
Então, no auge de seu surto Céris começou a quebrar tudo o que podia ser quebrado dentro daquele quarto até que os enfermeiros chegaram e a sedaram.
A última coisa que ela disse antes que caísse no sono foi:
- Mãe...

Tulipa 🌷 Parte I Onde histórias criam vida. Descubra agora