Bem vinda, enfim...

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Depois de mais um café da manhã em família, desses que Tulipa só via em filmes até sua chegada naquela casa, a tia a convidou para dar uma caminhada por ali mesmo,no entorno do bairro, apenas para tomar um ar e pegar algumas revistas na banca mais próxima.
Tulipa aceitou,pois seu sexto sentido lhe dizia que havia algo á mais naquele convite. Talvez a tia estivesse tentando estreitar seus laços de intimidade com ela, ou simplesmente sondar um pouco mais sobre a vida da menina que acabará de colocar dentro de sua casa, no seio de sua família. Ambas das situações pareciam absolutamente compreensíveis para Tulipa, que resolveu por fim dar a tal caminhada com a tia.
O bairro não era o mais agitado da cidade,mas tinha uma circulação de pessoas muito maior do que Tulipa estava acostumada a ver, pessoas de todas as formas e cores, dois ou mais idiomas ecoavam em pequenos cafés, lojinhas de antiguidades e bazares. Os prédios eram coloridos e com uma arquitetura provençal, que por poucos minutos era possível esquecer de que estavam em Nova York.
Poucos quarteirões após saírem de casa, Tulipa e a tia enfim chegaram á uma banca de revistas. Breatriz vasculhava o lugar atrás dos exemplares que queria e Tulipa voltou sua atenção para um artista de rua que estava á alguns passos de distância da banca oferecendo retratos e caricaturas por cinco dólares.
- Há muitos desses pelo bairro...- a tia interpelou sua observação silenciosa - Jovens artistas, músicos, pintores, poetas. Soho é o novo Brooklyn eles dizem.
- O que isso quer dizer?
- Bom, logo que cheguei aqui, ainda no começo dos anos 80, toda a energia cultural se concentrava no Brooklyn. Grandes escritores e astros de cinema moraram por lá. Havia shows em bares e cafés,recitais. "Rolava de tudo"! Como dizíamos na época.- tia Beatriz soltou um sorriso descontraído e nostálgico - Seu pai era fascinado pelas casas de jazz.
- Vi muitos discos de jazz no apartamento.
- Sim! Ele era um colecionador dos clássicos. Passava horas e mais horas escutando aqueles discos.
- Vocês eram muito próximos.
- Na infância éramos como unha e carne. Bruno era apenas um ano mais novo, e eu nem tenho lembranças de infância sem que ele estivesse comigo.
Depois na adolescência as coisas mudaram um pouco,éramos de turmas diferentes. Bruno sempre andou com os "bacanas", já eu...bom eu era só um garota magrela e desengonçada que passava horas lendo romances e assistindo filmes.
Bruno ia a boates e clubes badalados.
Eu ia a missa e ao cinema. Sempre sozinha.
Beatriz mostrou ao rapaz da banca as revistas que iria levar, pagou por elas e com um aceno de cabeça convidou Tulipa á seguir a caminhada.
Tulipa resolveu que iria tentar saber mais sobre o pai:
- E como vocês acabaram vindo para Nova York?
- Ah, eu vim primeiro, meu bem.
Quando terminei os estudos resolvi que iria me dedicar ao ballet, que era na minha opinião a única coisa que eu sabia fazer. Pedi ao seu avô que me deixasse tentar uma bolsa de estudos fora do Brasil, e ele me disse que se eu passasse teria o apoio dele. Tentei uma bolsa em Paris, outra aqui. E foi assim que acabei vindo para Nova York.
- E como foi? Você se deu bem nesse lance de ballet?
Beatriz gargalhou e deu um tapinha no ombro da sobrinha.
- Não querida, infelizmente não. Eu era boa no Brasil, aqui eu era uma garça manca. Mas entre uma aula e outra acabei conhecendo a irmã do seu tio, que me apresentou a ele, e o resto você pode imaginar...
- Posso..- Tulipa meteu a mão no bolso do casaco procurando pelo maço de cigarros da tarde anterior, mas acabou lembrando que aquele não era o casaco que estava usando ontem - E meu pai...como ele...como ele veio parar aqui.
- Bruno veio para cá oito meses depois da minha mudança. Ele conseguiu convencer nosso pai que precisava desse tempo longe de casa antes de decidir que faculdade faria. Moramos juntos no seu apartamento sabia?
- Desconfiei que ele tivesse tido uma acompanhante, mas não cheguei a pensar que fosse você.
- Eu morava em uma pensão para moças, mas quando Bruno disse a papai que queria vir para cá ele comprou a apartamento para nós dois.
Mas deu a Bruno o prazo de apenas um ano,para tomar a decisão. Claro que com um prazo tão curto ele só poderia ter escolhido o mais óbvio que era seguir a carreira de papai.
- Ele foi feliz?
- Como assim, darling? Não entendi sua pergunta.
- Nesse ano que viveu aqui, ele foi feliz?
Beatriz deu um longo suspiro.
- Talvez até de mais, querida. Foi aqui que Bruno conheceu as drogas, e que começou a se "acostumar" com o álcool... Eu tentava desviar ele de tudo isso, mas Bruno sempre foi impulsivo.
Tulipa sentiu um nó se formar em sua garganta,ela sabia que de certa forma ela herdará essa impulsividade do pai. Tinha pressa de viver tudo, queria experimentar tudo, saber tudo. E talvez tenha sido exatamente essa impulsividade que a levou a tomar a pior decisão de sua vida, pedir ao pai que a deixasse dirigir naquela maldita noite.
Quando sentiu que talvez não fosse controlar mais suas emoções e desabar em choro,Tulipa mordeu os lábios com toda a força que pode. Naquele momento desejou que Ângelo estivesse ali, queria abraça-lo, só ele poderia confortá-la.
-Ah, veja...- mais uma vez a voz da tia interrompia seus pensamentos- Aquela loja é maravilhosa! Venha vamos dar uma olhada, você está precisando começar a pensar no decoração do seu cantinho, não é meu bem?- a tia enganjou-se em seu braço e elas atravessaram a rua para entrar no Heaven's Bazar.
Havia um pouco de tudo ali, desde móveis antigos,a souvenires de Nova York. Em um grande balcão de vidro podia se ver caixas de chá de várias partes do mundo, como Istambul e Londres. Cristais, gnomos,livros raros ou apenas velhos, talheres supostamente de prata,entre outras coisas.
Enquanto a tia pareceu se encantar por um prato que segundo o vendedor dizia em um inglês meio "chinezado" ser uma autêntica porcelana chinesa, Tulipa se distraiu olhando uma velha mesinha de chá, arranhada e desgastada que ela logo imaginou que viraria uma obra de arte nas mãos certas. Nas mãos de Daniel.
- Quanto custa essa?- Tulipa perguntou ao atendente apontando para a mesinha.
- 50.
A tia olhou para Tulipa intrigada com a escolha dela: - Cinquenta dólares por essa coisa velha? Tulipa ...
- Vou ficar com ela.
Beatriz se espantou, mas não pode deter a compra.
Tulipa pagou pela peça e disse ao vendedor que mais tarde viria buscar, ele deu a ela o recibo e em seguida as duas deixaram a loja e fizeram o caminho de volta para casa.

Tulipa 🌷 Parte I Onde histórias criam vida. Descubra agora