"Chame-me do que quiser..."

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A clínica que Ceris havia se internado á quase um mês, no mesmo dia em que Tulipa havia partido, mais parecia uma bela casa de campo.
Um casarão antigo rodeado por um belo jardim e um vasto pomar.
Cavalos, emas, gansos e outros animais ornamentavam a paisagem reforçando seus ares de hotel fazenda.
Não fosse pela presença de duas enfermeiras na recepção e algumas mais espalhadas pelo gramado acompanhando outros pacientes e distribuindo refeições e remédios, mal se podia notar que se tratava de uma clínica psiquiátrica.
Ceris estava próxima de uma mesa grande posicionada debaixo da sombra de uma árvore grande. A mesa de café da manhã estava caprichosamente posta, e ela recepcionou Ângelo e Heitor de braços abertos e com um luminoso sorriso no rosto.
- Que bom que vieram!- disse ela ao abraçar o marido.
Sentaram-se e Ceris serviu o café á eles como se estivessem na mesa de casa. Assuntos banais como o tempo, a paisagem e a teimosia de Ângelo em não cortar o cabelo deram início a conversa. Em seguida ela deu a Ângelo algumas designações em relação ao trabalho dele no escritório, e com Heitor ela tratou sobre assuntos da do dia a dia da casa, e sobre os avanços de seus estado emocional. Em nenhum segundo ela tocou no nome de Tulipa, ou sequer demonstrou alguma curiosidade a respeito dela. Se tinha chegado bem a Nova York, se já estava entroçada com todos lá,nada.
A frieza de Ceris começou a enojar Ângelo, e ela não conseguia esconder isso. Ficou tão quieto e com a cara tão fechada que foi impossível seu pai não notar a mudança de humor e de postura dele durante a conversa.
- Tá tudo bem, filho?- perguntou Heitor encostando no ombro dele.
Ângelo apenas comprimiu os lábios e assentiu.
- Tem alguma coisa te incomodando, filho? - Ceris arrastou a cadeira em que estava sentada para mais perto dele e segurou uma de suas mãos, com uma estranha benevolência no tom de voz.
Ângelo a encarou com um olhar cético e revoltado, tão sério quanto podia se manter sem "cuspir" em cima dela toda a raiva que estava sentindo.
- Não sou seu filho.... - balbuciou ele entre os dentes.
- Ângelo...- Heitor o recriminou, tentando evitar que a situação ali ficasse ainda mais desagradável.
- Tudo bem, querido! Deixe. Ângelo tem todo direito de dizer isso, ele está apenas dizendo a verdade, não é mesmo?- Ceris tomou um gole de café enquanto olhava para Heitor, tentando parecer verdadeira ao dizer aquilo. - Chamo-me do que quiser, fi...quero dizer, Ângelo.
Houve um silêncio. Os três se entreolharam, como se estivessem disputando para ver quem seria o primeiro a sair correndo daquela mesa.
Heitor serviu-se de mais café, enquanto Ceris mastigava calmamente um pedaço de bolo de laranja.
Ângelo olhou para aquela cena e achou tudo tão patético.
Á anos eles fingiam ser a família perfeita. Os pais perfeitos para os filhos perfeitos, morando em uma casa perfeita cheia de coisas perfeitas. Mas Ângelo sabia perfeitamente quais eram as mentiras que sustentavam toda aquela "perfeição" e estava cansado de brincar daquilo.
Brincar de ser a marionete favorita da mamãe e do papai. Brincar de "está tudo bem" as vezes dói tanto. Fingir pode quebrar sua alma em mil pedaços e fazer você sufocar.
E era exatamente assim que Ângelo estava se sentindo naquele momento, sufocado!
Sentiu as pernas começarem a tremer e uma agitação tomar conta de sua cabeça.
Estava tentando resistir ao impulso de gritar na cara de Ceris tudo aquilo que estava entalado em sua garganta desde o dia que ela leu aquela sentença para Tulipa e ele na sala de estar daquela maldita casa.
Com uma coragem vinda repentinamente, de onde nem ele conseguiu entender, Ângelo apenas levantou da mesa e começou a sair daquele lugar.
Ouviu o pai chamar: "Ângelo"!
"Ângelo, onde você está indo?"
Continuou se afastando, tateando os bolsos da calça que estava usando procurando por um isqueiro, já que sabia que tinha um cigarro escondido no bolso de dentro da jaqueta que estava usando.
"ANGEL."
Era a voz de Ceris dessa vez.
"Desgraçada.." Ele pensou.  Como ela ousava o chamar assim, sabendo muito bem quem o chamava assim.
Ângelo parou e hesitou por alguns segundos em olhar para trás, mas Ceris havia escolhido muito bem a forma de chamar a atenção dele.
- Do que me chamou? - ele olhava fixamente para Ceris.
- Desculpe querido, não gosta de ser chamado assim também?
- Não seja ridícula!
- Ângelo, chega! - Heitor tentou intervir.
- Não pai, chega você! Chega ela! Chega dessa palhaçada!
- Ângelo, o que é isso? Por que está fazendo isso , filho?
- Por que eu cansei de vocês, pai! Cansei de fazer de conta de que ela não tirou de mim a coisa mais importante da minha vida! Cansei dos prêmios de consolação, dos panos quentes, desse fingimento besta estampado na cara dela!
Ceris mantinha a mesma expressão de  benevolência, o que irritou ainda mais Ângelo.
- Filho, não é o momento...
-Ah é sim, é o momento sim, pai. É o momento por que eu não aguento mais isso!
Ângelo começou a chorar.
- Á pouco mais de vinte dias eu disse adeus pra pessoa que eu mais amo nesse mundo. A SUA FILHA,CERIS? SUA FILHA DE VERDADE! E hoje a gente tá aqui, tomando café da manhã, fingindo que nada disso aconteceu,que Tulipa nunca existiu e que eu nunca a amei . Como se eu nunca tivesse visto ela ir embora sem poder fazer nada pra impedir, por que eu fui idiota! Por que eu morri de medo de perder essa droga de FAMÍLIA que vocês fingem ser.
Todos em volta estavam olhando.
Heitor com a mão na boca tinha uma expressão de total incredulidade. Ceris se mantinha em riste, sem demonstrar qualquer comoção.
Após alguns segundos de murmúrios paralelos, e olhares curiosos, Ceris começou andar na direção de Ângelo,que chorava e a encarava de uma forma ameaçadora como ela nunca tinha o visto antes.
- Então é isto...- disse ela pausadamente. - Este era o segredinho que vocês mantinham de mim...
Ela lançou um olhar recriminando Heitor ao passar por ele.
- Dei meu amor de mãe a você, meu empenho...tempo, dinheiro...fiz por você tudo que uma boa mãe faria. Mas você está renunciando a tudo isso apenas por que Tulipa o deixou ser o brinquedinho sexual dela?
- Que?...- Ângelo ergueu a voz. - Se tem alguém aqui que usa as pessoas com "brinquedinhos" esse alguém é você!
- Será mesmo?
- Sim!
- Se eu sou tão cruel assim e Tulipa é tão diferente de mim, por que ela foi embora?
- Por que você quis...
- Ah é!? E desde quando Tulipa e do tipo que se importa com o que eu quero? Quando foi que ela foi assim tão obediente?
- Não vou cair nesse joguinho....- Ângelo tirou o cigarro do bolso da jaqueta, bateu com força entre os dedos e colocou entre os lábios. Enquanto ele ascendia o cigarro Ceris se aproximou mais até ficar cara a cara com ele.
- Ela foi embora por que ela quis! Por que sempre foi o que ela mais quis fazer, ir embora! Deixar tudo pra trás. Deixar a mim, a você, nossa família , tudo para trás! O que eu dei a ela foi uma opção, Ângelo. Quem entrou naquele avião e te deixou para trás foi ela. Sabe por que, Ângelo? Por que Tulipa sempre foi assim, exatamente como o pai dela, quando ela se cansa de brincar com alguém ela vai atrás de brinquedos novos.
Foi isso que ela fez comigo, foi o que ela fez com Heitor, e está fazendo com você.
Não espere que ela mande notícias de Nova York, tão pouco que ela volte para os seus braços morrendo de saudades. Não vai acontecer.
E se eu estou errada, me prove, Angel!
Desde o dia em que ele partiu até agora, quantas vezes ela ligou? Quantos e-mails ela mandou?
Anda, responda!
Me prove que eu sou essa vilã tirana que você desenhou aqui diante de todas essas pessoas.

Tulipa 🌷 Parte I Onde histórias criam vida. Descubra agora