four

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Londres, 28 de janeiro de 1950.

Heaven Bryer

Princesa, não chore. Vou devolver-lhe a bola, disse um sapo. Podes fazer-me esse favor?, perguntou a princesa — fiz uma pausa na leitura para olhar para a figura de minha irmã, deitada em sua cama. Ela prestava atenção em cada palavra que eu proferia. Aquele era um de seus livros favoritos.

Me ajeitei na poltrona ao lado de sua cabeceira. Imitar as vozes dos personagens já estava deixando minha garganta seca. Entretanto, eu adorava fazê-lo a Sarah. Tanto mais naquele momento de tamanha fragilidade pelo qual ela passava.

Claro, mas só farei em troca de um beijo. A princesa concordou.

— Eca! — Sarah exclamou com a voz fraca, soltando uma pequena risada.

— Então, o sapo apanhou a bola, levou-a até os pés da princesa e ficou esperando o beijo — continuei a leitura, enfatizando algumas sílabas. — Porém, a princesa pegou a...

— Heaven, você já beijou? — a pergunta inocente escapuliu dos lábios da mais nova, me interrompendo.

Pega de surpresa, eu dobrei o livro em meu colo, colocando a mão sobre o peito, afetada. A julgar pela sua disposição em me deixar encabulada, Sarah aparentava estar bem melhor do que o dia anterior.

— O que disse? — questionei, apenas para ter certeza de que eu não estava completamente tresloucada.

— Você já beijou? — repetiu ela, mais baixo dessa vez.

Pensei na resposta por alguns segundos. Por fim, tive uma ideia razoável.

— É claro. Beijo-a todos os dias antes de sair para trabalhar e antes que adormeça — eu disse, trapaceando.

Sarah balançou a cabeça:

— Não, Heaven! Um beijo de verdade. Nos lábios!

Arregalei os olhos, mais uma vez sem palavras. Um beijo de verdade? Eu jamais a diria que a única experiência amorosa relativamente feliz que tive fora entre eu e um sorvete de chocolate comprado no verão passado. Jamais.

— Ora... Você já? – retornei a pergunta, buscando me esconder nas frestas de meu sarcasmo.

Era claro que ela, sendo tão nova, não teria mesmo beijado nenhum garoto, mas me senti intrigada em saber onde é que ela aprendera aquelas coisas. E se ela o tivesse feito, eu enforcaria o garoto com minhas próprias mãos.

— Não! Os meninos de minha turma são nojentos — Sarah constatou, se remexendo sob o lençol, o que fez a bolsa de água fria despender de sua testa. Reposicionei a bolsa, deixando o livro de contos sobre seu criado mudo em seguida.

Eu ri de sua tese, mas quando abro a boca para responder-lhe, ouço duas batidas na porta.

— Hora de dormir, garotas — meu pai surgiu pela fresta da madeira.

Pelo pouco que pude ver dele, ele vestia seu uniforme de trabalho. Eu também trajava a mesma roupa com a qual passara o dia todo no The Times. Mesmo chegando mais cedo em minha casa, tive de cuidar de Sarah para minha mãe enquanto ela nos preparava o jantar. Quando terminada a refeição, auxiliei a Sra. Bryer no cuidado com as louças e ainda fiquei responsável por ler para Sarah dormir. Foi mais um pedido de ajuda de minha mãe: ela estava tão cansada em decorrência de todas as tarefas do dia, que decidiu se deitar uma hora antes do comum. Porém, eu sabia que aquele era um dos motivos; ela aparentava não se sentir em condições psicológicas suficientemente estáveis para lidar com Sarah e sua recém descoberta doença.

1950 • h.sOnde histórias criam vida. Descubra agora