O som esquisito de buzina que parecia saído diretamente do próprio inferno era muito alto, mas só ele conseguia ouvir. Diante dos pensamentos tão subjetivos e precários que dominavam a mente desprovida de material capilar daquele homem, só restava caminhar, ser atingido pela poeira, caminhar pela estrada, em direção ao nada. Não adiantaria pensar muito em quem ou o quê havia acabado de acontecer. Agora não tinha mais um plano, não tinha mais para onde ir. Por mais que isso parecesse interessante e prolixo. Era um tempo quente, era um dia quente, havia sido uma noite quente e abafada. Para ele não havia nada mais odioso do que passar toda a noite acompanhado de pernilongos incansáveis, que agiam como se formassem uma quadrilha noturna. Eles visam somente o sangue... O sangue. Não seriam muito diferentes deste ser, João, em algumas das épocas mais ensolaradas de sua pacata e aventureira existência. Tinha defeitos facilmente identificáveis e manias que se podem considerar razoavelmente ridículas. Eram manias daquelas que todos os seres humanos devem ter e não contam, ou por não perceberem mesmo ou por vergonha e conivência. Não há nada demais em possuir manias ridículas, em alguns casos soa de forma cômica, mas o fato em questão não era o que se podia chamar de "mania". Não. O que estava acontecendo não era algo que se pudesse assim considerar...
- Ora, poderemos nos manter calados e parados diante de tantas afirmações infundadas. Eu adoro ouvir canções de homens podres e dotados de uma capacidade ridícula de raciocínio. Cantemos senhores, somos seres humanos! - dizia um velho que usava um chapéu de palha desgrenhado e sujo, saído não se sabe de onde. Estava a apenas três metros de distância, sua voz cansada e abafada soava como o barulho de vento ao longe, tocando em folhas de árvores e trazendo calafrios, ao cair da tarde. Medo antigo.
- Não! Não podemos ser considerados em síntese, humanos. Ou vocês acham que estas pessoas medíocres entendem o que lhes é passado na escola? - repetia o homem de apenas um braço, confabulando com mais três figuras disformes, desmembrados desconhecidos que emitiam grunhidos agudos.
- Claro que entendem! Dê a eles comida, pinga, e dinheiro e no mesmo instante estarão te chamando de meu amigo! - voltou-se para ele o velho da primeira fala.
- Joããão! - agora já era demais. Aquilo gritando era o próprio tio Frenando, falecido três anos antes, de uma doença que causava coceira. Sim, parece que o sujeito coçou-se até a morte. Mas o pobre rapaz careca estava enlouquecendo:
- Ao menos por um momento, poderiam parar com isso? Vocês não passam de vozes que eu não posso calar, não consigo saber o que são! O que eu lhes fiz? Será que não há como mudar essa coisa? Essa condição tão patética?
Vozes. Esta era a grande peleja daquele sujeito. Ele, João, ouvia vozes. Não vozes de sua esquizofrenia, ou vozes do além, mas vozes criadas por ele mesmo. Vozes que se repetiram por anos a fio como aconteciam desde sua infância. Acredita-se desde sua aventura com uns dois ou três primos atrás de uma geladeira. Os garotos esconderam-se atrás duma delas, era uma simples brincadeira, só que não havia ninguém para ajuda-los a sair daquele canto, arrastando a geladeira; fatalmente, assim como em vários casos de acidentes domésticos, sem explicação alguma uma das crianças desmaiou, imprensada entre a geladeira e o canto da parede. Ao acordar não era mais a mesma e seu cabelo havia sumido misteriosamente. A criança era o pobre João.
Agora, todos aqueles diálogos intermináveis com mortos ocorriam sempre que ele se encontrava sozinho, em algum lugar onde não havia muito vento ou água. Como e por que isso acontecia não se sabe ao certo, porem agora ele começava a pensar que, ironicamente, aqueles seres podiam ser suas únicas leais companhias, já que sempre apareciam assim que os outros, os vivos, se afastavam. Ele tinha plena convicção do que acontecia ali, e não estava sendo enganado. Era uma peça pregada por sua mente em meio ao matagal, em meio às aves ignorantes que ele vira a vida inteira e mal sabia o nome. Não! Não era possível, não era cabível admitir aquela verdade. O que tinha em sua cabeça redonda e careca agora era apenas um profundo pensamento de expert em algo que não existe, prevaricador do desconhecido constante, aquele que cava lama. Procurava elementos sólidos no meio de um mar de incertezas imediatas: estava realmente perdido. Não tinha motivo de mentir para si mesmo, tanto e tão pouco. O bolso o traria de volta à vida, mas aquilo era uma verdadeira sina maldita!
- Os animais não lhe fornecerão comida, os cactos não lhe fornecerão água. O máximo de controle que alguém pode conseguir por si mesmo é aquilo que você faz. Que programa deve estar passando agora momento na televisão? - continuavam as almas, em uníssono. Eram vozes que ecoavam dentro de sua cabeça, e por todas as partes.
Definitivamente o tio Frenando não parecia querer ficar quieto:
- João! Isso é um cemitério! Leve em conta o quanto tudo aqui, você, e onde estou é obscuro, o quanto tudo mudou. Esse local está dominado por seres trazidos pelo vento, por seres trazidos de outras épocas, seres de mais terrível maldade que se delineia em suas silhuetas que transitam livremente sem serem percebidas. Isso é algo muito grave ao mesmo tempo muito fascinante. Acha que qualquer pessoa vem aqui todo momento e percebe isso? Não? Caro João, não, muito pelo contrário eles permanecem anos e anos a fio penando aqui, pois não há escapatória. Na verdade você está diante do maior vórtice expiatório de almas penadas e perdidas desse maravilhoso pedaço do continente. Nem mesmo nas florestas mais fechadas você vai encontrar uma aglomeração tão poderosa como aqui. Eu diria que você além das fundações charlatânicas evangélicas híbridas é provavelmente o ser mais agraciado e privilegiado do mundo. Com esta oportunidade você pode presenciar, sentir, apesar de não prever o que vai acontecer a você e a seu couro. Eu digo, resumo, porque isso é. Não me leve a mal, mas isso é normal para os humanos. Para vocês, vivos. Mesmo assim se eu fosse você com certeza aproveitaria a oportunidade.
O careca, ou seja, João resolveu se pronunciar, pela primeira vez em muito tempo. Seus lábios estavam secos e murchos, como uma bexiga vazia. Ou peito de mulher velha.
- Parem!!! Vocês são apenas assombrações da minha mente! Eu não sou idiota. Não tenho nada que possam querer! Nada!
Silêncio. João apenas pensava... Pensava no quanto podia ter modificado as coisas um pouco antes daquele momento infame.
Surpreso ele não estava. Sua expressão era uma verdadeira incógnita diante de todos os seus conhecidos. Ele parecia não ter emoções, parecia não ser humano, às vezes, e todos reclamavam do fato. Ninguém via a expressão de seus olhos. Ele sempre usava óculos escuros. Mas dessa vez havia se confundido:
- Posso saber do que você está falando? O que andou usando nas últimas horas? Não sou um fantasma, e isso aqui não é o além. Ainda estamos nos Século XX, em 1974 e em terra firme. Eu sou Valles. Cadê o Régis???
- Valles??? - João não acreditava no que estava vendo.
- João, tu ta maluco? Sozinho aqui? Cadê o Régis eu pensei que ia ver ele e não você - O careca deu dois passos para trás, parecia muito confuso. Enxugava o suor da careca e fungava de forma estranha.
- Valles, claro. Régis, bem... Isso é o que eu chamaria de uma longa historia. Mas, você está de carro não é mesmo?
- Claro que sim. Como acha que eu viria parar num local como esse? O que houve?
- Como eu disse, é uma longa historia. Vamos sair logo daqui, cara.
- Não tão rápido, rapaz. - Disse um Valles desconfiado. - Tenho o dia todo, aliás, estou desempregado e minha vida tem sido uma sucessão de esperas nos últimos meses. Onde está o Régis? Pelo sangue que vejo na sua camisa e pelo fato dele não estar aqui... Creio que aconteceu algo grave. Acredito que este sangue não seja seu.
- Não, não é.
- E aí você o matou. Correto? - Disse Valles com olhar severo.
- Não, eu não o matei. Mas creio que não seja difícil entender que se alguém não matasse Régis, ele se mataria.
- Tenho que concordar com isso, mas não por motivos iguais. Bem, não preciso dizer que um sujeito como você, aqui nesse descampado e sozinho, não é nada agradável. Na verdade o Régis até me contou coisas, mas pareciam desconexas. Pode falar.
- Tudo bem, eu conto. Temos tempo.
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A Alcatéia
Historical FictionChapada Diamantina, anos 70. Dois assassinos de aluguel não muito discretos percorrem estradas caçando vítimas a esmo e planejando novos crimes. No caminho encontram todo o tipo de figuras e compartilham suas histórias, mau-humor e falta de educação...