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MAYA

Toco meus lábios ao recordar. A noite está fria, também como meu coração. Meu coração, que já era aposentado sem nem ao menos ter trabalhado, delirou tristemente com algo que não é real. E me fez perceber que não fui nada até aqui. Pensei e pensei outra vez. Por que ele não está inteiramente em minha vida? Sinto a tristeza invadindo o quarto. Procuro na escuridão a luz que me fez brilhar como fogo solto no caos, mas não encontro.

Não quero ver a multidão, mas estou inquieta demais para ficar em casa. Não posso ficar sozinha, corro o risco de me apaixonar. Na madrugada tão assombrosa, me visto com o objetivo não identificado. Ignoro o horário e desço pelo elevador.   Pergunto, olhando ao redor, para onde ir quando chego na rua. Um desejo de ver a cor da estrada e sumir toma conta de mim.

Estou só, mas ultrapasso a cidade sem medo. Os poucos postes mantém o caminho claro, enquanto meus olhos tentam avistar asas negras no céu escuro. Sinto que verei a manhã da segunda de outono passar por mim voando.

Poucas pessoas andam rapidamente, mas ainda assim de um jeito pacífico ao redor. Cada uma contendo seu próprio horário do início de um novo dia, onde elas colocam a dor de lado e vivem sua rotina de um jeito bravo, mas tão covarde ao acabar se deixando esquecer do próprio destino.

Eu escolho não olhar para nenhum rosto, porque sei que não irei ver ele. Não escolho nenhum caminho, porque sei que até ele não vai me levar. Só acabo em um lugar qualquer, e está tudo bem. Tento afastar o pensamento do seu jeito de me calar, mas já é inútil quando me sinto a 200 volts. Vejo flashes dos sonhos em qualquer lugar.

Posso ouvir a canção morrendo no ar. Aquela que brincou comigo como uma coisa tão natural. No instante em que seu corpo tão sereno acendeu uma pequena vela, mas logo incendiou tudo ao vir de encontro ao meu. O calor revive nas retinas ao lembrar, ainda com certa relutância. Noto que noites com sol são mais belas. E que afinal algumas sensações serão eternas.

Olhos marrons, dentes de marfim, silêncios dolorosos. Estou sentada há algumas horas no banco do parque. Chego a falar algumas coisas por conta própria sem entender mesmo que tais palavras saiam de meus lábios. Uma lágrima escorre por meu rosto, que antes mesmo de chegar a secar, evapora me arrepiando.

Algo estranho percorre meu corpo. Uma sensação de partida. Como se tivesse acabado de perder algo que não tinha nem ideia de que possuía até ter o vazio descontentando minha alma.

(***)

Noites em claro com a sensação do preto e branco retornando em minha vida. Não tenho conseguido nem sequer pregar os olhos. As olheiras deixam isso estampado. Sinto que meu sono é sugado aos poucos junto da minha inspiração em cada segundo quase que eterno passando bem em minha frente.

Como se a insônia não bastasse, estive esperando a semana inteira e até mesmo cheguei a procurar por um acontecimento capaz de fazer ao menos uma tentativa de quase sorriso surgir no meu rosto cansado. Mas a feição sem emoção e praticamente sem vida alguma persiste em ficar. Não tenho dúvidas de que esteja me tornado a vítima predileta de dementadores. Todos os dias, um diferente faz questão de me visitar.

O fato de que posso me mudar a qualquer momento não me preocupa mais. Já até guardei minhas coisas dentro de caixas. Elas estão espalhadas por todo apartamento que morei durante tanto tempo. Meu trabalho na recepção da galeria e até mesmo o de vendedora de obras se tornou inútil. Parei de observar o celular na esperança de uma ligação da cafeteria. A dona de lá deve ter sido simpática comigo por pura educação.

Meu emocional, que nem parece existir mais, acaba empatando com minha saúde. Tenho me sentido tão acabada, principalmente no fim do dia. E inutilmente tento descansar. Cheguei a comprar sabores diferentes de chá. Sr. Chuck disse que é ótimo para acalmar e dar leveza, com isso meu sono que tirou férias temporárias pode voltar. Mas nunca gostei muito de chá. Café ganha o meu coração e não deixa espaço para mais nenhuma outra bebida. Porém, ele é a última coisa que estou precisando no momento.

Minha enxaqueca também tem piorado, fazendo a lista de coisas desagradáveis aumentar. Decidi voltar a usar meu óculos esquecido na gaveta da mesa de cabeceira. Tem sido bom poder enxergar algumas coisas. Mas continuo incomodada e ainda menos acostumada a usá-los.

Vejo o relógio que indica pouco mais de 23 horas. Deixo minha coberta quentinha para ir na cozinha. Coloco a água para ferver e tento escolher um dos sabores de chá. Acabo pegando qualquer um, já sabendo que nenhum será de meu agrado.

Um golpe de ar vindo da janela escancarada me atinge, fazendo o corpo inteiro ser tomado por um arrepio longo. Reação que não tenho há algum tempo. Desde meu último sonho, para ser mais exata. Com aquele que não sei quase nada. Estou tão atordoada que sem duvidas, já teria esquecido seu rosto, se não fosse pelos varios quadros que fiz. Nem mesmo de seu nome saberia mais. Só que de alguma forma, se mantém fresco em minha mente. Assim como as sensações ainda familiares de seu toque. Não tem jeito. Não tem pessoa que esqueça o que ele foi capaz de fazer. E por ter feito o que me fez. Não é preciso saber mais nada para concretizar que esse é o motivo de tudo começar a perder a graça.

Tento não pensar que ele seria minha cura. Se é que alguém tem uma. Acabo me pegando meio perdida em lembranças que o envolvem pela milésima vez. Luto para evitar de querer isso, seja lá o que isso for. E mesmo que negue para mim mesma, a voz em minha cabeça continua gritando a verdade.

Me disperso por alguns segundos e noto que a água está borbulhando. Assopro a xícara em minhas mãos por medo de me queimar. Bebo o líquido que desce pela garganta deixando todo o corpo morno.

O jeito que o vapor embaça meus óculos é sutilmente engraçado e dá uma sensação de relaxamento. O corpo começa a pesar antes mesmo de terminar a bebida. Penso que se for para por o sono em dia, ao certo dormirei por 7 dias. E se o encontrar. Direi as únicas palavras que conseguirão sair de meus lábios.

"Acho que vim te ver."

Sky. {Mingyu} EM MUDANÇAOnde histórias criam vida. Descubra agora