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Ao dar play na multimídia, você ouvirá: Analogue Dear - Obrecht.

A todo momento, as pessoas tinham pressa. Em São Paulo, a pressa era triplicada. Os passantes não gostavam de quem andava devagar. Os passantes gostavam menos ainda de quem parava no meio do caminho para apreciar as vitrines ou tirar uma pedra do sapato. Em São Miguel Paulista, especificamente, era impossível não ser empurrado ou passar imune aos gritos dos vendedores ambulantes. Caso se conseguisse, ainda restavam as buzinas dos carros para incomodar.

O problema de Amélia era que, às vezes, ela esquecia que São Miguel era uma selva; como quase todo o resto de São Paulo.

— Amélia, temos encomendas para terminar — falou Ivana, puxando o braço da jovem com menos delicadeza do que gostaria.

Era obrigação de Ivana relembrar Amélia, de modo sutil, que os cidadãos não tinham paciência; ainda mais com jovens que atrapalhavam o movimento porque estavam observando títulos de livros em vitrines.

— Eu sei, só me dê um segundo... — Amélia murmurou, semicerrando os olhos. — Você consegue ler o título daquele ali no fundo?

Ivana suspirou, amassando os cachos de seu cabelo com as mãos.

— Por que você não entra para descobrir? — respondeu, incapaz de compreender a lógica da moça.

— Porque temos encomendas para terminar — Amélia retrucou, como se fosse óbvio. Era engraçado ver seu rosto franzido, combinando estranhamente com o cabelo castanho meio despenteado e o buraquinho em seu queixo.

— Você está demorando mais tempo aqui fora do que se estivesse lá dentro. — A mulher chegou mais perto. — E todo mundo que passa faz cara feia.

Amélia deu um último (e sofrido) olhar para a vitrine antes de voltar a caminhar.

Andar por aquelas ruas era sempre um exercício estimulante para ela, já que precisava desviar das pessoas a cada dois segundos. O barulho a deixava atordoada. É claro que morava em São Miguel, mas seu apartamento ficava em um canto mais calmo, o que foi uma das sortes grandes da sua vida. A parte em que estava, mais movimentada e ruidosa, era frequentada poucas vezes, quando precisava fazer entregas com (ou para) Ivana.

— Você acha que precisamos de mais chantilly? — A mulher negra indagou, enquanto atravessavam um amontoado de barracas de roupas.

— Ainda temos um estoque bem grande de chantilly — tranquilizou Amélia, um pouco em dúvida se tinha sido ouvida ou não.

Depois de conseguirem atravessar as barracas, ainda precisaram enfrentar as lojas com funcionários gritando promoções a plenos pulmões. Amélia se via perguntando, em inúmeras visitas àquele centro comercial, se viver também era aquilo: uma cacofonia existencial.

Ou talvez o seu modo de viver só fosse mais contido.

Após mais alguns infinitos minutos de caminhada, finalmente entraram em uma rua mais calma: a rua de Ivana. Amélia respirou fundo, aliviada, quando toda aquela confusão foi sendo deixada para trás.

— Talvez não precisemos de chantilly, mas tenho certeza que o chocolate está acabando — Ivana continuou a conversa, diminuindo os passos.

— Assim como o granulado, o leite condensado, a farinha de trigo... — A moça contou nos dedos.

— Ah, meu Deus, chega! — Ivana parou subitamente em uma das casas, tirando as chaves do bolso e destrancando um portão cinza com pequenas fendas laterais. — Você vai ao mercado com Natã quando ele chegar e vamos fazer estoque para um mês.

Almas de escritores perdidosOnde histórias criam vida. Descubra agora