4

285 71 560
                                    

Ao dar play na multimídia, você ouvirá: Halsey - Gasoline (Instrumental)

  •  

Três dias.

Já haviam se passado três dias desde o ocorrido.

O tempo estava escorrendo pelos dedos de Amélia. Foi difícil continuar trabalhando pelo resto da semana e fingir que nada tinha acontecido. Sabia que não poderia contar aquilo para ninguém. Afinal de contas, como contar algo que nem ela entendia?

O primeiro dia foi o pior. A moça não conseguiu pregar os olhos. Jogou o livro dentro de uma das gavetas na cômoda do quarto, como se carregasse uma doença incurável. Ela não conseguiu pegá-lo, mas às vezes sentia que ele se debatia dentro da gaveta. Céus, era como se aquele amontoado de papel fosse simplesmente criar garras e sair para fora, trazendo novamente a sensação gélida e a dor.

No segundo dia, ela jurava que tinha visto a cômoda se mexendo e passou a ficar na sala a maior parte do tempo. Chegou até a trancar a porta do quarto.

A cada vez que fechava os olhos, via tudo novamente. Sentia que, ao invés de sua memória modificar os fatos e alterar aos poucos as sensações das lembranças, estava tornando-as cada vez mais vivas e intensas.

No terceiro dia, quando derrubou uma tigela inteira cheia de massa de bolo no chão da cozinha de Ivana enquanto chegava à conclusão de que a coisa tinha tocado suas mãos, Amélia estava farta. Poderia explodir em milhões de pedacinhos a qualquer segundo.

Ivana e Natã murmuravam às suas costas, provavelmente supondo que tinha a ver com seus surtos de escrita. Seus erros nos doces estavam cada vez mais frequentes e estava superando o Drácula no quesito olheiras. Ela ouviu a palavra "psicólogo" e "pais" algumas vezes. Talvez devesse mesmo consultar algum profissional. Talvez devesse mesmo sair correndo para o Egito ou qualquer outro lugar que os pais estivessem. Talvez tivesse sido uma alucinação. Talvez, quando abrisse a gaveta da cômoda, o livro nem estaria lá, porque, na verdade, nada daquilo foi real; a livraria não existia, nem a atendente de mancha escura no queixo.

Porém, na manhã seguinte, quando ela puxou a gaveta pela segunda vez, o livro não tinha sumido. A capa azul continuava manchada por causa da chuva e as folhas continuavam enrugadas. Bem ali. Do mesmo jeito.

E se o queimasse? E se o rasgasse? E se o jogasse pela janela? Outra pessoa iria pegá-lo, não é?

Para Amélia, isso significaria que existia a possibilidade dessa outra pessoa sentir o que ela sentiu.

Não, não conseguiria existir com essa culpa.

O fim de semana se aproximou em um piscar de olhos. O trabalho foi uma válvula de escape, mas agora Amélia estava de folga e não conseguia nem colocar os pés para fora do apartamento. O zumbido da geladeira e a goteira do chuveiro eram suas únicas companhias. A moça vagava pelos cômodos, sem rumo, tomando cuidado para não se demorar tanto em frente à porta do quarto.

Em determinado momento, alcançou o celular e se viu pensando em pesquisar palavras aleatórias no Google, se sentindo meio ridícula. Não sabia muito bem o que digitar. Sensação gélida? Alucinações? Livros de capa azul?

Amélia teve um lapso. O título estava fresco na sua cabeça, claro. Lamentações e súplicas da palavra. Sem autor. O Google deveria saber algo.

Se antes apenas a geladeira e o chuveiro faziam parte da peça musical da casa, agora as batidas do coração de Amélia estavam altas o suficiente para acompanhá-los. Enquanto descia a página com os dedos, foi se acalmando — e se frustrando logo em seguida. Absolutamente nada de pertinente, apenas resultados infrutíferos com as palavras sendo buscadas de modo isolado. Ao que parecia, aquele livro nem existia.

Almas de escritores perdidosOnde histórias criam vida. Descubra agora