Ao dar play na multimídia, você ouvirá: Easier - Mansionair
•
Doce de leite nunca foi o sabor preferido de Amélia. Morango sempre foi mais atrativo, perdendo até para chocolate no seu ranking. Quando criança, era tão obcecada pela fruta vermelha que começou a plantar sementes em um pequeno vaso.
Por isso, realmente não entendia que tipo de cliente trocava morango por doce de leite no recheio do bolo. E foi função dela lidar com um monte daquela coisa gosmenta e sem graça (que fazia muita sujeira) enquanto Ivana ia fazer entregas. Nem acreditava que o turno finalmente estava chegando ao fim.
— Precisa de ajuda?
Amélia pulou de susto ao perceber a presença de Natã na cozinha. O rapaz franziu as sobrancelhas.
— Não. Já acabei. — Ela sorriu sem os dentes, fazendo um gesto evasivo com a mão. A colher que segurava caiu no chão.
Natã observou a amiga se abaixando para pegar o objeto, batendo a cabeça no armário da pia no processo.
— Então... — Ele fingiu não ver. — Vai ter feira de artesanato mais tarde, nós vamos?
Amélia ainda estava agachada, de costas para o amigo.
— Tenho um lugar para ir — respondeu, levantando-se com lentidão e jogando a colher na pia. Era a última que precisava lavar antes de ir embora.
Natã aproximou-se, parando atrás da moça.
— Você mal saiu do apartamento a semana inteira, agora tem um compromisso que surgiu em um passe de mágica? — reclamou ele, encarando a nuca de Amélia.
Ela apenas deu de ombros, concentrando-se em enxaguar a colher mais vezes do que o recomendado e finalizando a tarefa. O rapaz girou o tronco, certificando-se de que a mãe não havia chegado.
— Podemos fingir que aquilo nunca aconteceu — murmurou.
Amélia fez uma careta, finalmente virando o corpo para olhar o amigo.
— Nem sei o que precisamos fingir que não aconteceu — disse, sorrindo de modo tímido.
Mentia mal.
— Tem certeza? — Ele se aproximou mais.
Amélia olhou para cima, ignorando o pouco espaço que havia entre os dois.
— Certeza. — Deu a volta em Natã, tirando o avental para colocá-lo na bancada. Ali mesmo, também tinha pousado seu exemplar de "Lamentações e súplicas da palavra".
Encarando o livro, conseguiu rever, mentalmente, todas as páginas que tinha lido e passagens que tinha grifado, chegando à inútil conclusão de que nada ali fazia sentido nenhum. E por que os contos pareciam cada vez mais reais?
Ao longo da semana, tinha feito várias anotações sobre os cenários e os personagens. Nada batia: os gêneros, os lugares, as situações. Todos esses detalhes pareciam ser previsíveis, afinal, eram contos, mas mesmo contos normalmente possuíam alguma temática em comum nas coletâneas. E Amélia começava a ter certeza de que era uma coletânea de vários autores, já que a escrita era irregular e extremamente flexível.
Para completar, um dos contos em especial lhe chamou a atenção.
"Bruto e imprevisível. Diziam que meu pai era assim. Minha mãe preferia definir o marido como resistente. Infelizmente, ele não resistiu o suficiente quando morreu. E ela, más línguas diziam, que deveria ter absorvido um pouco da dureza dele, caiu. Cresci, e é difícil dizer em qual momento percebi que uma casa apenas comigo e com ela era algo anormal lá fora. E quem podia cuidar dela além de mim? Mesmo não lembrando nada sobre quem tinha deixado todas esses buracos."
VOCÊ ESTÁ LENDO
Almas de escritores perdidos
Paranormal"Amélia encostou na parede suja da rua, tentando normalizar a respiração e focar o olhar. A água começou a encharcar suas roupas. Seu corpo inteiro tremia, mas nenhum dos passantes parou para questioná-la. Olhou para o conteúdo que tinha nas mãos:...