Dia 19

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Acho que Let contou para minha mãe o negócio do hospital, porque acordei  às dez da manhã com a campainha na porta. Eles me deixaram faltar.  Gritei um "já vai" para quem quer que fosse e coloquei meu short e minha  camiseta mais próxima, antes de ir correndo atender.
Assim que abri a porta, um vulto grande e magro correu para me abraçar.  Quando escutei um soluço, descobri que o nome do vulto era Victor. Feliz, o abracei de volta com toda a força que tinha, mas depois notei algo triste.

Victor chorava. E foi aí que percebi que ele não estava me consolando, pelo contrário.

Victor queria ser consolado.

Com essa nova informação em minha mente, sem interromper o abraço, nos guiei até o sofá.
Eu nunca tinha visto Victor chorar e aquela cena estava acabando comigo.  Comecei a chorar com ele, mesmo sem saber o motivo. Sei que não  deveria, mas não aguentei.

- Victor, o que foi? Por que estava no hospital? O que está acontecendo com você?

Victor se afastou de mim, com o rosto magro ainda molhado de lágrimas.

- Desculpa, Ju. Desculpa, por favor, me desculpa! – Ficou murmurando,  antes de esconder a face nas mãos. Afaguei suas costas sem entender  nada.

- Do que está falando? Desculpar pelo quê?

- Por tudo. Por ter me conhecido. Você não merecia. – Exclamou, ainda chorando.

  Sem entender, apenas arqueei a sobrancelha para ele, esperando uma explicação.
Ele apontou para a sigla E.T.C em seu ombro, a mesma que ele não quis me dizer o que significava no outro dia.

- Essa foi a primeira que eu fiz. Significa... – Ele fechou os olhos, se  livrando das lágrimas remanescentes. – Significa Eu Tenho Câncer.

Levei as mãos ao coração. Até aquele momento nada fazia sentido para mim e só com aquelas duas palavras eu entendi todas – todas – as atitudes de Victor desde então.

Entendi porque ele tinha aquela mania de dizer que a vida era curta,  entendi porque ele roubou e porque ele brigou, entendi porque ensinava  música para crianças, entendi porque fazia siglas para tudo, entendi  porque ele trabalhou por apenas uma semana, entendi como ele conseguiu  passar na USP, e principalmente, entendi porque ele estava tentando me  afastar.

Entendi tudo de repente, e mesmo assim, nada fazia sentido.

Victor tinha câncer. E pessoas com câncer morriam.

"E terei vinte anos para sempre, Ju". Lembrei dele dizendo. Era  isso que ele estava querendo dizer? Que jamais sopraria a vela de vinte e  um? Que jamais se formaria na faculdade? Que jamais quebraria nenhuma  regra, porque não estaria mais aqui para quebrá-la? Ele, por um acaso,  estava querendo dizer que tinha apenas dias de vida?  Por que não me disse antes?
Às lágrimas começaram antes que eu ousasse impedi-las e não falei nada.  Não fiz nada, a não ser olhar para um ponto fixo no sofá. Minha garganta  ficou seca e eu já encarava Victor como se ele não estivesse mais aqui.

Quando olhei para cima, Victor tinha parado de chorar, mas eu ainda não. Sentia a enxaqueca chegando, mas não liguei. Eu ia ter várias enxaquecas.

O dia dezenove foi um dos piores dias da minha vida. Se fosse para receber uma notícia dessas, eu preferia não receber notícias.

- Ei. – Ele chamou, depois de não sei quanto tempo. Olhei para ele. – Isso não é o fim do mundo.

- É sim. – Consegui dizer, baixinho.

- Vai passar, Ju, vocês vão superar.  E assim descobri a causa da morte de Karina. Ela morreu de câncer, então, era por isso que Victor não ficava triste quando falava dela. Ele estava passando pela mesma situação.

Victor pegou minha mão, dando um beijo nela.

- Eu só faço siglas nos braços, porque fechei meu tronco, não tem mais  espaço. Mas antes de fechar, reservei um espaço para fazer uma sigla  especial. – Contou ele, ainda segurando minha mão.

- E onde é esse espaço?

- Perto do meu coração. – Contou. Em seguida, soltou minha mão e ergueu a camisa, apontando para o local. – Bem aqui.

E quando vi o que ele tinha feito, chorei de novo.

Júlia Montovani.

Era eu. Ele tatuou meu nome.

  - O que vai ser de mim sem você? – Perguntei, enxugando as lágrimas.

- Exatamente a mesma pessoa que você era sem mim. – Respondeu, terno. Funguei.

- Isso não pode ser. Eu jamais vou esquecer você. Nunca.

Victor suspirou.

- Eu lamento muito, muito mesmo.

- Não lamente. Mesmo que por pouco tempo, você foi uma das melhores  coisas que aconteceram na minha vida. – Confessei, o abraçando. – Eu não  quero dizer tchau para isso, mas a culpa não foi sua. Você só estava  vivendo, e isso é normal.

Victor sorriu.

- Adeus, Ju.

Recomecei a chorar.

- Isso foi uma despedida? Você... Você...?

Vi uma lágrima escorrer do rosto dele.

- Eu precisei...

- Por que escondeu isso de mim?

- Como você iria agir se soubesse que só tinha dias de vida, Júlia? Hein?

- Não sei. – Respondi, sincera.

- Olha, eu... Eu preciso voltar para o hospital. – Falou, se levantando.

- Por quê?

- Não me deram alta. Eu fugi. – Levantei também, prestes a dar uma bronca. – Eu precisava te ver, Ju! Não sei quanto tempo tenho e hoje, acordei bem.

  - Por que não me ligou? Eu teria ido visitar você!

- Não quero que me visite no hospital! Quero que lembre de mim assim, saudável, inteiro.

- Certo! Mas não podia ter fugido. Não precisa ser certinho, mas não quebre as regras, Victor.

  E com um sorrisinho, ele simplesmente disse:

- A vida é muito curta para seguir às regras, vizinha.

***
notas:
MUITAS EMOÇÕESSSS
só mais 3 capítulos para o fim. :(

Burn with you - Neagle FanfictionOnde histórias criam vida. Descubra agora