Fé Nenhuma - Engenheiros do Hawaii

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- Que merda é essa, Giulia? - meu pai entrou voiciferando no quarto - Você chega tarde? Beleza, tudo bem. Agora, me sair em site de fofoca na internet se envolvendo com traficante? Tem noção do que isso acarretaria para a imagem da sua mãe?
Ah, claro, esqueci de comentar. Meu pai também é o agente da minha mãe. Bronca em dobro.
- Sabe quem está lá? O Freitas, Giulia! Aquele canalha das notícias está ali fora porque você é uma ingrata! Acha que vai ser a filha de mãe famosa? Acha que se vira uma Sasha Meneghel sendo uma zé droguinha? Você tinha que ser, no mínimo, bonita igual a Sasha.
- Mamãe já sabe? - sussurrei.
- O quê? Fala mais alto, garota imprestável!
- Minha mãe! - gritei irritada. Meu pai nunca me tratara daquela maneira, por maior fosse o problema que eu apresentasse.
- Não - ele disse. Sentando-se na minha cama e apoiando a cabeça na palma da mão - Isso vai acabar com todos os nossos planos para o carnaval.
Levantei da minha cama com uma determinação que nunca tive e fechei a porta.
- Você pode enganar a mamãe, mas a mim você não engana.
- O que foi dessa vez, pirralha?
- Sabe por que eu estou nessa manchete? Porque a sua empregada era a traficante. Eu ouvi coisas, Carlos e vi coisas também. Se você estiver trazendo problemas para dentro de casa...
- Giulia você é louca - ele disse rindo - e tem sorte de sua mãe não ter te internado ainda. Diz pra mim, por que diabos você está me acusando?
- Foi você que contratou essa... Essa mulher que claramente não é doméstica.
- Quem te garante que fui eu, garota?
- Mamãe me disse.
- "Mamãe me disse". Pois você, cria de holoforte, está sendo muito enganada. Pensa bem, qual famoso não se envolve com drogas? E ainda mais, qual o jeito mais fácil de não atrair paparazzi algum? Olha só sua carinha, acho que "mamãe" acusou a pessoa errada.
Ele riu e saiu do meu quarto, deixando-me sozinha e completamente sem chão.
Meu cérebro era uma gritaria danada. Me senti traída e violada. Deixei novamente de tomar meus remédios, que diferença faria? Eu seria a drogada de qualquer maneira. Fui culpada por algo que não fiz e, pior, por algo que minha família fizera.
Não conseguia acreditar que meu pai estava sendo sincero, mas fazia tanto sentido. Já fazem duas horas que estou apenas pensando, sem me mover da cama. Ligo um som extremamente alto, mas tudo é vazio. Soa como vazio e é tão estranho, tão silencioso.
Já sentiu isso? O vazio gritando éalgo rouco e assustador. O medo me embalou, perdi a determinação acusatória que antes possuía. Não podia confiar em quem eu mais amava e mais tentava impressionar. Queria tirar essa história a limpo, mas mamãe estava no carnaval do Rio de Janeiro cantando. Deveria ter ido com ela. Eu deveria ter ido para qualquer bloco. Nunca deveria ter ido à Paulista. Em meio à tudo isso, como fazia toda vez que me abstinha dos remédios e tinha uma descarga mental, apaguei.
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- Amorzinho, é só entregar a grana. Não precisa de muito esforço, umas jóias da sua esposa querida, pagam. Você está fazendo um circo pra nada! - Tinha certeza que era Anne. Uma nova conversa estranha. Mas tinha certeza que ela não falava com minha mãe, que estava no Rio.
- Querida, você não entende. Estamos juntando o útil ao agradável aqui. A gente leva a Mel, estrela mundial, pede um resgate milionário e ganha uma grana preta para viver onde quisermos, querida. Você não tem noção do dinheiro que a família dela tem. - com certeza, meu pai.
- E nesse meio tempo você paga logo os caras?
- Claro, querida, nunca mais vai ter traficante na cola de nenhum de nós.
A conversa era nos sussurros, mas eu tinha um ótimo ouvido. Não era possível que estivesse escutando coisas novamente. Fui atrás da conversa que seguia junto a voz melosa e apelidinhos vez ou outra. Cheguei até a cozinha.
- Eu sabia! - gritei alto, ao ver os dois próximos demais - Sabia que minha mãe não mentiria para mim!
Anne fez a melhor expressão de quem de nada sabia e disse:
- Senhor, do que ela está falando?
Meu pai riu e eu, por impulso, peguei uma peça do faqueiro à minha esquerda e segurei sem jeito.
- Giulia, abaixa isso, querida. Não quer que eu ache que você enlouqueceu, não é?
- Eu não sou louca! - segurei a faca com mais força - Você vai levar a mamãe e eu não vou deixar!
- Ninguém vai levar ninguém - ele virou os olhos - Mas sabe o que também não vai acontecer? Alguém acreditar na drogada bipolar.
Cerrei os dentes, segurando o choro. A tristeza das palavras vindas de alguém que eu tanto gostava me fizeram correr para fora de casa. Péssima ideia. Paparazzi.
Larguei a faca de cozinha no chão, no momento em que percebi a besteira que tinha feito. Eu estava horrível, cheia de olheiras e sem as pulseiras que cobriam meu braço. Coloquei as mãos para trás e baixei a cabeça. Agora tinha que ir até o final.
— Giulia! Giulia Mendes! — gritavam — Como sua mãe reagiu as últimas notícias?
Uma lágrima rolou por minha bochecha. Minha mãe ainda nem sabia, mas tinha muita, mas muita notícia ruim pra ela digerir. E eu esperava, sinceramente, que ela acreditasse em mim.
Andei sozinha até o Ibirapuera e me sentei na árvore que, há dias, encontrara Leo. Parecia tão distante aquele dia até hoje. Um privilégio da juventude é esquecer rápido, perdemos a noção. Minha noção de tempo estava tão conturbada agora quanto minha visão de felicidade. Cravei as unhas em um corte não cicatrizado e deixei sangrar. Para onde iria agora?

Eu Apenas EsqueciOnde histórias criam vida. Descubra agora