Os dedos de Carlos pairavam sobre as teclas, indecisos. O cursor da tela piscando em uma acusação silenciosa.
Ele ergueu os olhos e esquadrinhou a saleta de casa como se buscasse respostas, mas encontrou apenas o avô bebericando seu café e rabiscando uma tabela de sudoku num jornal velho.
— Vô, preciso de um título — Carlos pediu.
O idoso parou de sorver o líquido da caneca e encarou o neto como se chifres começassem a brotar de sua testa.
— Precisa de quê, menino?
— Só de um título. Não é nada demais.
— Se não é nada demais, porque está me incomodando?
A sobrancelha do avô subiu, naquela típica expressão que fazia quase qualquer um calar a boca imediatamente.
Quase.
— É que o senhor sempre foi o mais criativo e apaixonado dessa família. Suas histórias são as melhores.
Aqueles olhos embotados pela miopia encararam Carlos de alto a baixo.
— Eu lá tenho cara de alguém criativo e apaixonado? — o velho questionou, gesticulando para si mesmo.
O neto tinha que concordar que o roupão esfarrapado, os chinelos e a barba por fazer não conferiam ao avô nenhum pingo de paixão.
— Por favor — implorou, os olhos pedintes e as mãos unidas junto ao peito.
O avô o sondou uma última vez e por fim, cedeu.
— Tudo bem. Se isso fizer você deixar eu terminar meu café em paz.
— Isso! Obrigado vô, muito...
— Tá bom, menino. Parece até que é o fim do mundo.
— Quando se trata de espaços em branco, toda ajuda é bem-vinda.
— Tanto faz? Do que tu precisa?
Carlos pensou por instante.
— Quero um título longo, que tenha um som interresante. Algo ótico, que transmita uma imagem.
O avô colocou a mão no queixo por puro efeito, invocando a imagem de pensador.
— Que tal, "Colírio Em Uma Pálpebra Fechada" — sugeriu.
— Quando disse ótico, não estava falando do olho em si.
— Mas você não acredita na dificuldade que é acertar colírio nos olhos. Ainda mais na minha idade...
— Não. Preciso de algo mais apaixonado — Carlos interrompeu. Se deixasse, o avô divagaria até o fim dos tempos.
O velho encolheu as pernas da banqueta onde as apoiava. Sinal de que começava a levar o assunto mais a sério.
— Hummm — começou — "Dez Lírios Sob a Porta da Fachada" me soa bem romântico. Foi exatamente o que eu fiz quando tava paquerando dona Lourdes. Claro que ela jogou as flores na minha cara, mas acho que foi um bom começo para nós.
Seu rosto enrugou ainda mais ao sorrir e os olhos encararam um ponto vazio da sala, talvez vislumbrando memórias não mencionadas.
— Ainda não. Tente algo sobre decisão, destino.
— "Desvios Numa Curva Bem Fechada" — o avô atirou. — "Destino de Uma Cena Bem Forçada".
— Não, não. Algo visceral e irônico.
— "Desenho de Um Óbito a Facadas". Tipo aqueles filmes feios que tu gosta de assistir.
— Parece interessante, mas ainda não. Acho que estamos perto. Manda mais um.
A cara dele se fechou diante da indecisão do neto e, quando disse o próximo título, sua voz já soava um tanto irritada.
— "Delírios Em Uma Órbita Fechada"
— Acho que não. Talvez...
O velho explodiu.
— Ah, vai te lascar! — ele gritou, agitando uma das mãos. — Tá me achando com cara de besta, por acaso?
— Não, vô! — Carlos apressou-se em dizer. — Não quero fazer o senhor de besta, não. Preciso mesmo de ajuda. O que eu coloco?
— Não sei! Tudo que eu falo tem defeito.
— Desculpa, vô! É sério. Preciso mesmo de um título.
O idoso o observou, balançando a cabeça como alguém que pergunta seriamente a Deus onde foi que ele tinha errado.
— Quer saber? — falou enquanto recuperava a xícara esquecida. — Deixa... Só deixa!
— Deixa o quê, vô?
— DEIXA LOGO ESSE NEGÓCIO EM BRANCO E DEIXA EU TERMINAR O MEU CAFÉ EM PAZ!
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Um Monstro Chamado Devaneio
De TodoEsse é um livro de coisas avulsas, lotado das mais estranhas contradições. Onde um neto procura um título com a ajuda do avô ranzinza e o número zero é capaz de mostrar seu valor. Onde um figurante no fundo da cena consegue lugar de fala e um rapaz...