Pombos

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Natasha diz que trabalha em um drive in. Conta que o drive in foi inspirado em filmes americanos, daqueles adolescentes que assistem a cinemas dentro do carro e que não consegue explicar como isso se tornou uma ideia para motéis por aqui.

- O mais engraçado é quando tem uma terceira pessoa escondida no banco de trás ou no porta malas, para não pagar a garagem extra, que seria a mesma coisa do que o quarto extra de um motel.

O interfone do apartamento oitenta e seis toca e sou autorizado a liberar a entrada de um rapaz portando um pacote de ecstasy e heroína que sequer imagino que carregue.

Quando você faz o mesmo caminho de volta para a casa, as mesmas pessoas se tornam familiar. Não precisa conversar com ninguém, mas só de ver os rostos dessas mesmas pessoas toda santa noite, te traz um alívio. É como se estivesse em um lugar comum.

Digo, elas não te mataram por todo esse tempo. Muito menos enfiaram a ponta de um estilete na sua jugular para te assaltar. Esse pedaço de lugar, mesmo com pessoas que você sequer dirigiu uma palavra, se torna muito mais familiar do que o próprio trabalho.

Foi assim que conheci a Natasha.

O interfone do apartamento cinquenta e dois e sou autorizado pelo casal a receber uma entrega de brinquedos eróticos.

Falo para a Natasha que os pombos em Estocolmo aprenderam a usar o metrô no início da década de noventa. Também falo que foram os pioneiros da fotografia aérea e desde o Egito antigo, mandavam e recebiam recados.

Os pombos são monogâmicos, eu falo.

O café está exageradamente doce, eu falo.

Então a Natasha ri de tudo aquilo, o que me faz rir com a risada dela. Somos as duas únicas pessoas naquela loja de conveniência sem ter para onde ir. Quer dizer, quando você escapa da morte, as ideias demoram para clarear na sua cabeça.

O interfone do apartamento setenta e quarto toca e sou autorizado a receber o pessoal de mudança por conta do sequestro da mulher do cara. De repente, ele me diz, há mais segurança no apartamento do que em uma casa.

- Olhe só para a gente — ela diz — você é um porteiro e eu uma recepcionista de motel. Imagine aquelas pessoas que limpam banheiros de shoppings e rodoviárias. Cobradores de ônibus. Gente que compra e vende ouro. Entregadores de panfleto. Aquelas frentistas de posto de gasolina.

Eles pagam e pronto, acabou. Natasha me diz que ninguém reparou nos novos brincos, mas se o preço da garagem tornar o sexo mais caro, eles reclamam.

Somos invisíveis, eu digo.

E a mulher da loja de conveniência masca seu chiclete enquanto trás mais um bule de café. Quando traz mais uma rodada, conta pra gente que a melhor garantia que a gente tem de não ser assaltado é quando crianças vendem balas no sinal. Jamais assaltam quando tem crianças envolvidas no meio.

- Você fica o dia inteiro vendendo dois, três copos de café. Alguns salgados que estão assados há quatro dias e um maço de cigarro. Então começa a reparar nessas coisas que ninguém repara. Por falar nisso, quem é que vai pagar a conta?

Natasha logo toma a frente e diz que as quatro xícaras de café são por sua conta, já que não é todo o dia que um herói aparece para salvar a sua vida.

O interfone do apartamento catorze toca e eu falo que já chamei a atenção da vizinha do apartamento vinte e quatro por conta do barulho. Quando pergunto sobre o que era o barulho, a pessoa desliga o interfone constrangida.

Você assiste a filmes turcos na sessão da tarde e tenta sintonizar alguma rádio enquanto passa dez horas sentado. Aperta o botão de liga e desliga para quem for entrar e sair. Aciona o portão da garagem e atende o interfone.

Considere esse meu primeiro encontro nos últimos oito anos. Um encontro de verdade e não faço ideia do que fazer que não seja esperar às quatro e quarenta, quando os metrôs voltam a circular.

Natasha me conta que é a responsável por acender as luzes da sala de serviço, dando o sinal para as camareiras limparem os quartos. Ela deixa a luz verde e destrava a porta via sistema. A camareira entra no e sai correndo logo em seguida, dizendo eu nunca tinha visto uma posição daquela.

- É bom rir de vez em quando.

Quando o interfone do apartamento setenta e um toca, permito que a Vanessa traia o marido.

Já esqueceram as alianças na cama, Natasha diz.

Já esqueceram baseados no apartamento quarenta, eu falo.

Tem gente que leva mal enormes e apostamos quais sãos os bizarros brinquedos que estão lá dentro, Natasha diz.

A vizinha do oitenta e sues tá pegando o rapaz do vinte e dois, eu falo.

- E qual foi o ato heroico do seu galã? — a dona da loja de conveniência junta-se a nós e pouco se importa que o letreiro da loja está com duas letras apagadas, uma piscando e somente duas funcionando de verdade.

Às vezes tudo o que você precisa é de um norte. Não interessa onde ele te leve, que se foda os fins. Quem está interessa do pelo fim de todas as coisas?

- Mas a porra da direção conta muito e somos invisíveis — Natasha me interrompe e confere as horas — carros com vidro fumê e horários de entrada no almoço. A gente chama de carro e horário dos amantes.

Conto que tem vezes que as empresas de tevê a cabo entram em contato direto com o síndico, oferecendo bônus, premiações e até móveis, por cada apartamento que aderir ao seu produto e quando você menos espera, tem uma antena coletiva especificamente dessa empresa.

- O que o síndico mais ama é uma assembleia vazia.

A dona da loja de conveniência boceja e recolhe a mesa. A gente se levanta, compra alguns doces e se despede dela, enquanto a mesma espera pelo marido para revezar o turno naquela loja vinte e quatro horas vazia.

Talvez ninguém note o acidente, já que o recall veio rapidamente. Para muitos, nada aconteceu na madrugada. Pouco importa as duas mortes, meu ombro deslocado ou o nariz sangrando da Natasha. Somos audiência para os mendigos e plantonistas de hospitais. Nem o estagiário que sonha em ser repórter se interessa pela matéria onde um ônibus capotou no meio da madrugada, aparentemente sem motivo algum, por mais que o motorista tenha discutido com o cobrador a viagem inteira.

Somos pombos em plena luz do dia. Você sabe que existimos, mas sequer importa com isso.

Mas ser invisível tem suas vantagens.

A gente combina um encontro que há anos nenhum de nós tivemos. Ninguém se importou com isso e duvido muito que te contaria sobre como é passar a noite inteira num drive in.

O interfone toca e ninguém atende a ocorrência de pombos que cagaram na varando do apartamento noventa e cinco.

Alta VoltagemOnde histórias criam vida. Descubra agora