É como um soco na cara

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Logo de cara, você não daria nada pelo Ruivo. Não o culpo, ele tem um jeito irritantemente displicente. Ri de qualquer coisa e tropeça em tudo quanto é lugar. Tão desleixado que você, e mais um grupo de dez apostadores, deixaria comigo uma soma de três mil reais para ver o tempo que ele aguentaria de pé em uma luta.

Pode pensar o que quiser do Ruivo, você tem motivos suficientes para isso. Porém, o que me faz conferir nota por nota enquanto você fica boquiaberto com o que aconteceu, é que eu conheço o Ruivo bem melhor do que você.

Há pouco mais de dez minutos, de onde estou, você escutaria o estalo oco de um punho esfacelando o maxilar do pobre coitado que não soube armar uma guarda decente.

Se você está em uma área de um pouco mais de dois metros quadrados, de frente com um cara muito maior do que você e, com sorte, possuir alguma experiência com pugilismo, a primeira coisa que faria era esmurrar continuamente as costelas até que elas trinquem. Isso faria com que o grandão passe a ter certa dificuldade em respirar. Pode até ficar de pé, mas não com o mesmo vigor.

Depois acerte suas têmporas. Um zumbido infernal vai deixa-lo mais desnorteado ainda. Por fim, com o pobre coitado recobrando o equilíbrio, vem o nocaute. Um arco perfeito com a mão direita, bem no maxilar.

Saldo total de três costelas trincadas, um maxilar quebrado, dois molares a menos na boca e uma quantia de sete mil reais no bolso.

Todo mundo faria isso, mas somente o Ruivo é capaz de fazer diferente. Sei disso porque apostei no melhor do que qualquer um desse bairro sujo de lutas clandestinas.

Apostei naquele que será conhecido por vencer todos com a merda de um único soco.

Apostei todas as minhas fichas, e consegui pagar as contas de água e luz lá de casa, no Jack, o Ruivo.

Jack se escora no chão da própria arena improvisada, com alguma bebida que deve ter sido perdida por ali mesmo, e me pergunta sobre a quantia que ganhamos dessa vez.

Respondo que se ele continuar nocauteando todo mundo que apareça com um só murro, ele pode até conquistar um nome, mas vai ficar foda encontrar alguém disposto a ser conhecido como "mais um que o Ruivo nocauteou com apenas um soco".

Ninguém cresce querendo ser mais um, apesar de ser o destino da maioria.

- Esquece, não vou entregar nenhuma luta.

Não se trata de entregar a luta para mafiosos, como naqueles filmes. Digo para encarar como uma derrota técnica. Amoleça para que os outros agentes acreditem que você não é tudo isso que está se mostrando ser.

Quando descobrem que um Deus pode sangrar, esse mesmo Deus deixa de ser temido.

Jack se levanta, apoia uma das mãos em meu ombro e abre um sorriso com aquele rosto que não sofreu nenhum aranhão.

- Você deveria parar de se preocupar com essas coisas. Eu não me importo com isso e você também não deveria se importar.

- Pensando dessa maneira, as lutas clandestinas vão ficar mais clandestinas ainda por fugirem de você.

A gente se levanta com a lua mais gorda do que nunca.

Talvez aquele cara que resolveu lutar contra o Jack jamais imaginaria que a sua visão da lua seria uma mescla de branco e vermelho. Também jamais imaginaria sobre o deslocamento da retina. O corte no supercílio, ok. Mas a retina deslocada foi demais.

- Pensa só naquele cara que foi pro chão — Jack fala enquanto confere nota por nota. Ele confia em mim, só não confia nos outros — provavelmente ele tomou, hoje, o maior cacete da sua vida. Ele vai pra casa e vai se explicar para a mulher. Vai contar que se meteu de novo em lutas clandestinas e que seu agente tá mais puto da vida comigo do que com ele.

- Não me importo se o Papai Noel não for deixar nenhum presente na casa dele.

- Exatamente. Ninguém se importa. Você acha que ele vai fazer o que? Abaixar a cabeça e engolir o orgulho a seco enquanto pensa onde vacilou comigo ou vai caçar mais lutadores de beco de rua pra poder se reerguer?

Ele diz que é claro que é a primeira opção. Depois de hoje, nada mais será o mesmo pra ele. Enquanto ele não pressionar o meu rosto contra o chão, não vai sossegar tão cedo.

- Vai demorar para que ele volte a lutar com você, não precisa se preocupar.

- Não estou preocupado. É isso que quero que entenda. Se a cada cara que eu derrubar, eu ficasse imaginando tudo isso, estaria ferrado. Dá muita dor de cabeça.

A lua continua gorda e deve ser quase duas da manhã.

As lutas clandestinas estão longe de toda aquela grife cinematográfica. Esqueça os cartolas cheio de ternos ou madames fumando cigarros franceses. O que interessa é algum lugar onde não podemos ser vistos e toda a excitação em não saber se voltará para casa mais rico ou mais pobre.

Essa foi a décima quinta vitória do Ruivo. O mais assustador é saber que esse foi o décimo quinto soco que ele deu em todas as lutas somadas.

O filho da puta tinha uma direita de outro mundo e não se importava com nada que fosse a próxima bebedeira com os amigos.

Era o que ele fazia de melhor. Maxilar quebrado, nariz deslocado, beiço rasgado em dois, a quase perda de visão ou o zumbido no ouvido que durou duas semanas.

Dava muita dor de cabeça imaginar como cada adversário estaria depois de uma luta. Não que ele não se importasse. Estaria disposto para uma revanche assim que os agentes negociassem comigo a próxima luta.

Ruivo, o da Direita do Diabo, Punhos de Fogo ou como queira chamar, eu o conheço melhor do que todos vocês, por isso ainda insistem em pagar pra ver.

Por falar em pagar, com esse dinheiro quito as contas de casa e compro um presente caro para minha mulher e o próximo mês só Deus sabe.

Acho que devo ter entendido o que ele quis dizer.

E quando você começa sacar essas coisas, é como um soco na cara.

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